domingo, 11 de março de 2012

Minúsculos, mas de peso. Organismos invisíveis a olho nu demonstram capacidade de resistir a viagens interplanetárias


© Drüm

Eles sobrevivem a condições impensáveis para qualquer outro terráqueo (veja no infográfico). Fazem seu lar em águas hipersalinas, desertos tórridos, crateras de vulcões e nas geleiras antárticas. São seres vivos que só se pode enxergar ao microscópio, mas gigantes naquilo que revelam aos astrobiólogos como Claudia Lage, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). “A estrutura genética de microrganismos como vírus, bactérias e arqueias é tão diversificada que eles poderiam ter sido formados em lugares muito diferentes do Universo”, afirma. A ideia tem raízes na panspermia, hipótese que postula a origem da vida em múltiplos pontos do Universo, não necessária e exclusivamente na Terra.
A super-heroína da área é a bactéria Deinococcus radiodurans, que resiste a altas doses de radiação e se revelou, em simulações feitas em aceleradores de partículas, capaz de suportar viagens pelo espaço pousada em fragmentos de poeira (ver Pesquisa FAPESP nº 176). Sem a proteção de uma nave espacial, o ambiente interplanetário não é lugar para seres vivos: doses altíssimas de radiação ultravioleta e raios X, além de bombardeios impiedosos de partículas aceleradas por explosões solares, tornam impossível a existência de qualquer forma de vida.
Claudia e o biólogo Ivan Paulino Lima, também da UFRJ, em parceria com pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP), da Itália e do Reino Unido, concluíram agora outro estudo mostrando que a Deinococcus atravessaria sem grandes danos as partículas lançadas pelo vento solar, entre as quais os prótons são as mais nocivas (saiba os lugares da Terra onde os microrganismos foram encontrados). A resistência permitiria que essas bactérias, montadas na poeira que está disseminada pelo Universo, viajassem espaço afora por milhões de anos. Tempo suficiente para chegar de Marte à Terra, concluiu o estudo publicado no final de 2011 na revista Astrobiology, a partir de experimentos realizados em aceleradores de partículas na Itália e no Reino Unido, que simularam as condições típicas de viagens interplanetárias com irradiação de prótons, íons de carbono e elétrons no vácuo, para microrganismos tanto viajando por conta própria como a bordo da poeira liberada de cometas ou asteroides. O trabalho demonstrou que as energias mais baixas, características dos ventos solares comuns, não têm nenhum efeito sobre as Deinococcus, mesmo que desprotegidas. As explosões solares liberam energias maiores e mais letais, mas, dependendo de sua intensidade, basta que a bactéria esteja aderida a grãos, mesmo pequenos, para se proteger do bombardeio de partículas. “Essas energias não são frequentes o suficiente para impedir que as bactérias sobrevivam”, completa Ivan Paulino Lima, atualmente na Califórnia para um pós-doutorado na agência espacial norte-americana (Nasa).

Perigo no espaço
Uma constatação importante do estudo é que para esses microrganismos as partículas espaciais não representam o maior obstáculo. A poeira cósmica, portanto, é essencial não para proteger as bactérias dos bombardeios de prótons, mas da radiação ultravioleta a que Deinococcus já revelou resistir. “Estrelas são verdadeiras usinas de radiação”, afirma a pesquisadora. O estudo mostrou que, ao fim de uma viagem interplanetária, a superbactéria teria tempo de sobra para pousar na Terra, mesmo depois de passar pela vizinhança do nosso Sol: de acordo com essas pesquisas, ela resistiria mais de um ano – pelo menos 420 dias – às doses de radiação ultravioleta típicas da órbita terrestre, mesmo sem a proteção de uma atmosfera. O limite de tempo não foi definido pelo fôlego atlético das potenciais viajantes extraterrestres, mas pelo período de que os pesquisadores dispunham para os testes no Laboratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS), acelerador de partículas em Campinas, no interior paulista. É possível que elas possam resistir muito mais tempo.

Outro trabalho recente do grupo, igualmente publicado na Astrobiology, ampliou as possibilidades de sobrevivência no espaço: mostrou que essa bactéria não seria o único ser vivo a sobreviver nas inóspitas condições características das regiões próximas a estrelas e planetas, ainda mais letais do que os bombardeios na zona interplanetária. Duas outras espécies de microrganismos, Natrialba magadii e Haloferax volcanii, também aguentam altas doses de radiação ultravioleta, embora menos intensas do que a suportada pela campeã entre as bactérias. “Elas tentam emparelhar com a Deinococcus”, conta Claudia, “e isso já impressiona; são doses muito elevadas de radiação”. É a primeira vez que esse tipo de organismo – as arqueias, formas de vida que por muito tempo foram confundidas com bactérias, mas na verdade são bem distintas do ponto de vista genético e evolutivo – passa por uma simulação das condições interplanetárias. Entre as duas arqueias testadas, N. magadii surpreendeu resistindo até mais do que a Deinococcus ao tratamento preparatório para os experimentos – alto vácuo e desidratação –, suficiente para exterminar bactérias não extremófilas como a Escherichia coli, onipresente no ambiente humano. Até certo nível de radiação, os três microrganismos mostraram uma capacidade de sobrevivência semelhante. Acima disso, N. magadii se saiu melhor; H. volcanii não resistiu, possivelmente por já estar fragilizada pelo vácuo. Mas isso está muito longe de desanimar Claudia. “Mesmo que a maior parte de uma amostra seja pulverizada pela radiação, algumas arqueias resistem a altas doses de ultravioleta; talvez o suficiente para que a espécie consiga colonizar outros planetas”, especula a astrobióloga da UFRJ. “Na próxima simulação, vamos irradiá-las em condições mais semelhantes às que existem na casinha natural delas”, planeja Claudia, que justifica a relevância do teste: a poeira cósmica pode ser composta por diversos elementos, entre eles sais como os silicatos ou carbonatos, que podem conferir graus distintos de proteção.

O desempenho das arqueias nessas situações-limite não é de todo inesperado, afinal muitas espécies são reputadas como extremófilas, ou amantes de ambientes extremos, por colonizarem todo tipo de ambiente pouco convidativo, como lagoas hipersalinas e fumegantes crateras de vulcões. Mas para Claudia o resultado é importante pela diferença profunda entre bactérias e arqueias. “As arqueias são um reino à parte, considerado mais primitivo em relação às bactérias.” A descoberta sugere, portanto, que formas ainda mais rudimentares de vida poderiam viajar e colonizar diferentes recantos do Universo.
A membrana celular é, segundo ela, essencial nessa defesa, por evitar que a radiação atinja o mais importante, o material genético. E essa membrana é semelhante entre as três espécies estudadas pelo grupo de Claudia, o que é inesperado por ser atípica para bactérias como Deinococcus. No caso das arqueias, mecanismos compensatórios na membrana impedem que elas percam água mesmo no seu ambiente hipersalino. Os pesquisadores acham que isso é o que protege as células da radiação, embora o envoltório celular de N. magadii ainda não tenha sido estudado em detalhes. Mas além da membrana reforçada, a Deinococcus tem outro truque. Cada bactéria é formada por quatro partes, como se tivesse começado uma divisão sem completá-la, o que faz com que tenha cópias suplementares de seu genoma completo, o que permite recuperar informações caso uma delas seja destruída.

Extremos terrestres
Na busca por indícios de origens distintas da vida, os pesquisadores continuam vasculhando ambientes onde só bactérias extremófilas podem existir, como no lago Vostok, nas profundezas do subsolo antártico, perfurado em fevereiro por cientistas russos. Uma das mais recentes descobertas em ambientes extremos deste planeta é uma bactéria encontrada na Antártida e estudada por Amanda Bendia, uma aluna de Claudia que defenderá sua dissertação de mestrado ainda este mês: submetida a altas doses de ultravioleta, a bactéria ainda sem nome respondeu de forma idêntica à Deinococcus. A corrida agora é para descobrir sua identidade. Se for outra espécie de Deinococcus, será a primeira integrante de um gênero adaptado a altíssimas temperaturas a viver no gelo. Se for uma bactéria completamente distinta, será mais uma origem independente da capacidade de enfrentar condições típicas do espaço sideral. Duas possibilidades empolgantes.

Para além de traçar as possibilidades de seres vivos em circulação pelo Universo (mesmo que bem diferentes dos marcianos em naves espaciais dos filmes), pesquisas nessa área têm também aplicações práticas: saber o que é necessário fazer para matar essas superbactérias. “Antes de mandar uma sonda para Marte, é preciso desenvolver processos de esterilização violentíssimos para não levar as extremófilas para fora da Terra”, explica Claudia.
Essa história deve ser ampliada nos próximos anos, quando entrar em plena atividade o AstroLab, laboratório sediado em Valinhos, no interior paulista, especializado em investigar possibilidades de vida fora da Terra. Um dos Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia (INCTs) financiados pela FAPESP e pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), o centro desde janeiro começou análises de microcomunidades de ambientes extremos, como geleiras e fundo do mar. “A grande vantagem é reunirmos todas as etapas num único lugar, desde o armazenamento das amostras até as simulações espaciais”, conta Douglas Galante, do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da Universidade de São Paulo (IAG-USP), e um dos coordenadores do novo centro de pesquisa – junto com Fabio Rodrigues e Rubens Duarte, ambos da USP. Os equipamentos que permitirão simular condições extraterrestres estão, neste momento, no navio a caminho do Brasil. Ele promete boas notícias em breve.


Artigos científicos
1. PAULINO-LIMA, I. G. et al. Survival of Deinococcus radiodurans against laboratory-simulated solar wind charged particles. Astrobiology. v. 11, n. 9, p. 875-82. nov. 2011.




Nenhum comentário:

Postar um comentário