sexta-feira, 22 de abril de 2011

Cuba: relatos sobre a restauração do capitalismo



Por Gabriel Casoni e Verónica Garcia   
Seg, 18 de Abril de 2011 


   O que é Cuba hoje? O debate sobre o que acontece na ilha é muito polêmico no interior da esquerda.  Existe uma enorme nuvem de fumaça sobre a realidade deste país. Para muitos, se trata ainda de um Estado operário, o “último bastião do socialismo”. Para nós, trata-se justamente do contrário. Gabriel Casoni e Verónica Garcia visitaram Cuba no início deste ano e descreveram em reportagem especial para o Opinião Socialista o que realmente ocorre na ilha.
   Havana, 14 de janeiro. As ruas mal iluminadas jogam uma tímida luz sobre os decadentes casarões coloniais. Os antigos Cadillacs e Chevrolets da década 50 passeiam tranquilos pela Avenida Paseo Del Prado. Cartazes oficiais com as fotos de Fidel e Raúl Castro colorem as paredes velhas. Próximo ao imponente edifício El Capitólio, numa esquina escura de Havana Vieja, uma cubana é abordada por um turista europeu. A conversa é rápida, e alguns minutos depois a jovem entra num luxuoso hotel para estrangeiros. A prostituição retornou à ilha.
   Na simpática ruela Obispo, encontramos José, vendedor de livros no centro de Havana. O senhor, de expressão cansada e conversa fácil, oferece-nos obras de Marx e Lênin e nos convida para ir até sua casa para mostrar as coleções. Em “seu” pequeno apartamento, repartido entre várias famílias, não há geladeira, tampouco cama ou fogão. Sobre uma estante antiga, os livros empoeirados. José faz a oferta sem titubear: “as obras escolhidas de Marx em troca de sua camiseta”.
   A revolução cubana de 1959 acabou com as paupérrimas condições de vida do povo cubano. O desemprego colossal foi diminuindo até o pleno emprego, o acesso aos alimentos básicos erradicou a fome, o direito à moradia se converteu em realidade para todos, a reforma agrária permitiu terra aos camponeses pobres, enquanto o nível alcançado na educação e na saúde se tornou um símbolo mundial das conquistas da revolução socialista. Hoje, em 2011, 52 anos depois da revolução, qual é a realidade do povo cubano? O que aconteceu com suas conquistas? O que é Cuba hoje?
“Aqui em Cuba tem capitalismo de Estado e miséria para o povo”
  17 de janeiro, Santa Clara. Em 1958, Che Guevara, à frente da coluna rebelde n° 8, tomou a cidade. Sua conquista era então estratégica para o triunfo da revolução cubana. Passados mais de 50 anos, uma cena revoltaria o velho.
   Num café reservado aos turistas, uma mesa chama a atenção. Nela está um grupo de senhores elegantes, com roupas de grifes europeias e sapatos finos. Os homens são membros do Partido Comunista Cubano (PCC). O tema da conversa não é o socialismo ou a revolução, nem ao menos as condições de vida do povo. Eles falam sobre como aproveitar “as novas oportunidades de negócios”.
   Não é para menos. Na pequena ilha, o capitalismo prospera. Multinacionais europeias associadas aos órgãos governamentais promovem uma intensa expansão dos negócios privados. Um mundo de luxo, praias paradisíacas e turismo sexual, colorido pelo charme “revolucionário” da ilha, oferece-se para o deleite do estrangeiro.
   O turismo, motor da economia cubana, desmente a argumentação de que os problemas de Cuba têm origem no bloqueio comercial norte-americano, suposto responsável pela não entrada de recursos. Somente em 2010 a atividade injetou mais de 2,5 bilhões de dólares [1], emplacando um recorde, segundo os relatórios governamentais. Juan, trabalhador numa fábrica estatal de alimentos e “orientador” de turista nas horas vagas, explica: “aqui tudo gira em torno do turismo, só com o salário da fábrica se passa fome”.
Fome e miséria
  20 de janeiro, Havana. Ao caminhar pelo famoso passeio El Malecón, podemos ver antigos edifícios, feitos de pedra e terra. É possível observar também aqueles que pedem dinheiro nas ruas, mães que põem seus filhos para pedir esmolas a estrangeiros, homens e mulheres que buscam de alguma forma extrair algo da multidão de turistas que aflui a seu país porque é exótico e barato e porque, em algum momento, houve uma revolução. É evidente que eles apreciam uma outra Cuba, diferente daquela em que o povo vive.
   Há uma Cuba paralela: a dos turistas e privilegiados pelas ligações com o alto escalão do Estado, que vivem em ótimas condições materiais. Miguel, trabalhador cubano, num tom contido e duro, desabafa: “Há negócios em Cuba, o turismo domina tudo, as pessoas ligadas ao governo estão bem, pois se beneficiam disso. Enquanto isso, a vida do povo só piora cada vez mais”.
  Do outro lado, o quadro se inverte. A Cuba de hoje é um povo que tem fome, que em sua miséria material grita e espera por mudanças. Os baixos salários, a falta de moradia, água e eletricidade, a carência de medicamentos e a mísera ração de comida fazem-nos recordar de qualquer país latino-americano. Essas cenas podem ser vistas em qualquer Rua de São Paulo, La Paz, Buenos Aires, Bogotá ou Lima.
  Esta não é uma imagem de um país socialista, tampouco de um Estado operário. Esta é a Cuba capitalista. É o que deixa claro um taxista em Santa Clara: “Aqui em Cuba tem capitalismo de Estado e miséria para o povo. A gente não tem comida, somente os que têm negócios conseguem melhores condições. Para o povo... o povo tem fome”.
  Uma imagem que ilustra a ruína econômico-social pela qual passa a ilha é a ração alimentar mantida pelo Estado, da qual depende a maioria dos cubanos. De acordo com especialistas[2], nos anos críticos da década de 90 (dito “período especial”), a ração mensal fornecida pelo Estado garantia alimentação para 20 dias. Atualmente, o que era insuficiente se tornou calamidade. A ração mensal garante apenas 12 dias de alimentação para uma família.
 “Troco os livros por medicamentos ou roupas”
  Santa Clara, 18 de janeiro. As crianças correm pela rua, escutamos risadas vindas de um edifício e podemos ver pais e mães esperando por seus filhos: não é mais que uma velha escola em Santa Clara. Um edifício muito velho abriga esses jovens. A escola sofre com as péssimas condições. Nas salas pequenas, as paredes mal se sustentam. A qualidade da educação é uma das conquistas que ainda sobrevivem, mas já com buracos em suas entranhas. O que farão os meninos e meninas depois que terminarem sua educação em um país que não garante um salário maior que 30 dólares?
  A opinião popular é um indicador preciso do que acontece em Cuba. Os cubanos reconhecem a “qualidade” da saúde e educação, no entanto, apontam que esses serviços estão piorando. Encontramos Pedro numa fila de ônibus na periferia de Havana. Questionado sobre a qualidade da saúde e educação, o trabalhador responde: “está piorando, cada vez mais. Desde a década de 90 os serviços sociais pioram... As atuais reformas atacam ainda mais”.
  Do mesmo modo, a queda na qualidade da saúde é inegável. A atenção médica segue gratuita, mas os medicamentos são escassos e, na maioria dos casos, as pessoas têm que comprá-los. Assim comenta Rafael, que faz “bicos” para sobreviver em Havana: “troco os livros por medicamentos ou roupas. Aqui em Cuba o dinheiro não existe, para mim o mais importante é se tenho acesso a medicamento ou roupas”.
Contrarreformas atacam o povo
  Em 2010, o PIB cubano cresceu anêmicos 2,5%, enquanto a produção de alimentos caiu 15%. Já um ano antes, o governo havia sido obrigado a suspender os contratos, sequestrar contas bancárias e suspender pagamentos. O salário médio não deixa dúvidas sobre a miséria econômico-social que assola os trabalhadores cubanos. Segundo dados oficiais do órgão La Oficina de Estadísticas de Cuba (Panorama Econômico e Social 2010), o rendimento médio foi de 456 pesos (cerca de 15 dólares ao mês) no último ano. Pedro, trabalhador cubano, resume a situação dramática: “Faltam comida, luz e roupas... O salário não dá para as necessidades básicas”.
  Nesse contexto de grave crise, está sendo processada uma reforma econômica com drásticas medidas. O governo, que emprega cerca de 90% dos trabalhadores da ilha, anunciou um corte de 500 mil servidores até março de 2011, como forma de reduzir “vultosos gastos sociais”. Segundo analistas, a massa de desempregados – que pode chegar a 1 milhão em três anos – terá dificuldades para ser absorvida pelo mercado. Entre as alternativas sugeridas aos sem emprego pelo governo estão criar coelhos, pintar prédios ou conduzir barcos na baía da Havana.
  Para o jornalista e escritor cubano Carlos Alberto Montaner, trata-se de um “ajuste brutal, que poderia ser qualificado de ‘neoliberal’ se tivesse sido feito por um governo democrático”. “Em três anos, planejam despedir 1,3 milhão de pessoas. Isto é mais de 25% da força de trabalho. Não haverá empregos para este número enorme de pessoas. A esperança não admitida pelo governo é de que os familiares e amigos exilados os sustentem desde o estrangeiro”, afirma.
  
Ditadura capitalista e luta pelo socialismo
  O letreiro semiapagado anuncia o filme “Casa Vieja”. No antigo e charmoso cinema “Karl Marx”, centenas de cubanos assistem atentos à película nacional. O filme trata de temas polêmicos: homossexualidade, machismo e relações familiares. Num certo momento, um dos protagonistas dirige-se a outro personagem e pergunta: “neste país se pode pensar?”. Todo o cinema cai em risadas, completando a ironia da cena.


   A ditadura em Cuba amordaça e reprime violentamente. Estão proibidos os sindicatos independentes, a oposição pública, a livre expressão e a liberdade de organização. Enfim, não é tolerada a mínima divergência organizada em relação ao regime. João, que trabalha num teatro em Havana Vieja, quase sussurrando, nos explica a situação: “não posso manifestar minhas opiniões, não posso viajar, para falar com vocês tenho que falar em voz baixa para ninguém ouvir... Queria comprar um sapato, mas não posso, meu salário não permite... Veja: dizem que a educação é boa e é verdade, mas de que adianta isso se eu não posso ter minhas opiniões livres?
  Com a restauração capitalista, o regime ditatorial tornou-se ainda mais nefasto. A ditadura “castrista” que se erguia sobre a base social de um Estado operário, hoje se apoia sobre o capitalismo. A diferença em relação a qualquer país latino-americano que derrubou regimes ditatoriais na década de 80 é a de que em Cuba, frente ao ajuste neoliberal do governo, não se pode fazer greves, realizar manifestações ou mesmo organizar um sindicato livre.
  Em um sistema capitalista, há uma luta incessante para definir quem é mais “forte”, pois o objetivo é conseguir mais dinheiro e melhores condições materiais. Uma minoria obtém os privilégios econômicos à custa da maioria, que trabalha duramente para obter ao menos um pouco de alimento, enquanto outras pessoas já sofrem a síndrome do desemprego. As expressões de dor são comuns entre a gente que, em sua miséria, trata de encontrar alguma alegria para sobreviver. Isso é justamente o que acontece em Cuba sob o “tacão” da ditadura.
  A tarefa imediata e mais sentida pelo povo cubano é a derrubada da ditadura. Junto a essa luta, é preciso estar contra os “ajustes neoliberais” anunciados recentemente pelo governo, bem como defender as conquistas sociais que sobrevivem. A luta pelo socialismo em Cuba pressupõe retomar a propriedade estatal sobre os principais meios de produção, além de reconquistar a planificação econômica e o monopólio sobre o comércio exterior. É necessária uma segunda revolução política e social em Cuba!

[1] Jornal La Juventud Rebelde, nº 74, 16 janeiro de 2011.
[2] Jornal Folha de S. Paulo, 6 de janeiro de 2011.
Fonte: Jornal Opinião Socialista, no. 421

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