© Juliana Sciani / Instituto Butantan
Ouriço: depois de uma espetada, um anti-inflamatório pode ser útil Uma mesma espécie de sapo, a Rhinela granulosa, produz venenos diferentes quando vive na caatinga ou em florestas como a mata atlântica. Uma jararaca da região amazônica, a Bothrops atrox, fabrica venenos de composição distinta no Maranhão ou no noroeste do Amazonas. Em um mesmo local, jararacas machos e fêmeas injetam em suas presas venenos com componentes distintos. A composição e, portanto, a letalidade dos venenos podem variar em um mesmo animal: uma espécie de anfíbio – a cobra-cega Siphonops annulatus – produz toxinas diferentes na cabeça e na cauda, por onde é mais atacada quando se enterra ou entra em buracos. Já as abelhas produzem venenos com cheiro que lembra o de mel e ingredientes que variam de acordo com a temperatura e a estação do ano.
Antes pouco diferenciadas, essas misturas de toxinas estão ganhando identidades próprias, à medida que seus ingredientes e as prováveis funções biológicas de cada um deles se tornam mais conhecidos nos laboratórios do Instituto Butantan, o centro nacional de referência na produção de soros contra animais peçonhentos. A eficácia dos tratamentos, agora está claro, poderá ser ampliada à medida que se agregarem informações sobre a origem, o ambiente, a idade e a dieta do animal peçonhento: o soro para a picada de uma jararaca de São Paulo pode não servir para aplacar totalmente os efeitos da picada de uma espécie do norte do país. As Bothrops respondem por cerca de 80% dos 20 mil acidentes com cobras registrados por ano no Brasil, com uma mortalidade de 10% entre as pessoas que não tomaram soro, enquanto as cascavéis são responsáveis por cerca de 10% dos casos, embora com 75% de mortalidade.
O conhecimento crescente sobre os componentes dos venenos pode ser útil para tratar até mesmo acidentes com animais menos perigosos como os ouriços-do-mar Echinometra lucunter, causa comum de ferimentos no litoral. “O veneno desse ouriço não mata, mas merece respeito”, diz Daniel Carvalho Pimenta, pesquisador do Butantan. Sob sua orientação, Juliana Sciani analisou o veneno liberado pelo espinho do ouriço e verificou que o inchaço – ou granuloma – do local da espetada é um sinal de uma reação inflamatória intensa, que pode durar dias, embora geralmente não mereça muita atenção. Por essa razão, diz ele, “receitar um anti-inflamatório e um analgésico pode ajudar muito depois da picada”.
Para os animais, os venenos expressam as estratégias de sobrevivência. “O veneno facilita a vida das cobras venenosas, que podem ser magrinhas, enquanto as jiboias, que não são peçonhentas, têm mais trabalho para se alimentar: elas matam as presas enrolando-se nelas e sufocando-as”, observa Carlos Jared, biólogo do Butantan que há duas décadas investiga a origem e as prováveis funções dessas misturas de toxinas que representam a continuidade da vida para uns e o fim da vida – ou ao menos muita dor – para outros.
Matar ou apenas espantar – Jared sabe bem o que uma cobra pode causar: já foi picado três vezes, na primeira por uma cascavel e nas outras duas por jararacas. Por sorte, estava no próprio Butantan e o atendimento foi rápido. Em 1984, ele demonstrava para um grupo de visitantes como um par de botas recém-importadas poderia evitar a picada de uma cascavel. Ele esticou a perna, a cascavel atacou, mas a bota não barrou a picada, como todos esperavam. “Senti os dentes da cascavel injetando o veneno na minha perna. Eu sempre dizia que temos de manter a calma nessas horas, mas naquele momento não consegui. Nunca corri tão rápido até o hospital.”
O veneno é uma forma de defesa de que muitos animais se valem para caçar ou evitar que sejam caçados. Enquanto cobras, escorpiões e aranhas atacam ao menor sinal de perigo ou de alimento por perto, os anfíbios – sapos, rãs e pererecas – preferem afugentar em vez de matar, adotando o que Jared chama de veneno pedagógico. Jared e sua equipe têm visto que as Rhinella, diante de possíveis predadores, enchem os pulmões de ar, estufam o corpo e deixam as glândulas chamadas parotoides prontas para esguichar veneno. Ao morder os sapos, os animais da floresta ou os cães domesticados apertam as glândulas, que liberam um líquido leitoso tóxico diretamente na boca do predador, causando taquicardia e vômitos. Uma perereca-verde do grupo das Phyllomedusa adota uma tática defensiva mais refinada: ela se deixa comer e, enquanto o predador a engole, libera substâncias que provocam o vômito; em menos de um minuto a perereca sai pulando enquanto o predador permanece entorpecido e faminto.
Às vezes o veneno depende da dieta. Os dendrobates – rãs de pele de cor azul, verde ou amarela de no máximo três centrímetros que vivem principalmente na Amazônia – se alimentam de formigas, besouros ou ácaros que, por sua vez, se alimentam de fungos venenosos. Os dendrobates sequestram esse veneno, que se acumula nas glândulas da pele. É assim que uma espécie de dendrobates, a Phyllobates terribilis, incorpora a poderosa batracotoxina, produzida por besouros e talvez por outros insetos. Jared comparou a letalidade dos venenos da Phyllobates e da jararaca e concluiu que o primeiro, da rã, é 8.750 vezes mais letal. Um pássaro da Papua-Nova Guiné, o Pitohui dichrous, também come desses besouros e libera essa toxina pela pele e penas. Se a alimentação muda, o veneno desaparece. Os dendrobates mantidos nos viveiros do Butantan, que comem baratinhas, são inócuos. “Na verdade”, diz Jared, “eles eram venenosos, mas não estão venenosos”.
Nem sempre é assim. Pimenta analisou o veneno de cinco grupos de espécies-irmãs das Rhinella, que viviam na caatinga, na Amazônia ou em cativeiro. Externamente, todos são amarelados, com uma consistência próxima à do látex da seringueira, e secam rapidamente. A composição geral era a mesma. Já as abelhas Apis mellifera, provavelmente em resposta a variações de temperatura, produzem venenos de composição distinta no inverno e no verão, podendo causar diferentes tipos de reações alérgicas. Somente no inverno é que fazem uma variante – ou isoforma – do antígeno predominante, a melitina, em uma proporção maior que os principais componentes do veneno de verão. “Os soros experimentais contra as picadas de Apis só funcionam às vezes, talvez por não levarem em conta essas variações”, diz Pimenta.
© Eduardo Cesar/dados Daniel Pimenta-Instituto Butantan
Abelhas: composição do veneno varia ao longo do ano
Dos gosmentos aos diáfanos – A composição do veneno de dois representantes da mesma espécie de jararaca, uma do Maranhão e outra do Amazonas, também pode variar e induzir à produção de diferentes grupos de anticorpos, de acordo com um estudo de Maria de Fátima Furtado e outros pesquisadores do instituto paulista. Como explicar as variações de venenos em seres da mesma espécie que vivem em lugares diferentes? “Esse pode ser um sinal de que o bicho está mudando e outra espécie se formando”, comenta Jared. “Em alguns milhares de anos, talvez sejam espécies completamente distintas.”
Pimenta está vendo que venenos evoluem, passando de misturas rudimentares como a gosma amarelada e insolúvel de um anfíbio como a cobra-cega para líquidos transparentes e cristalinos como o veneno de pererecas, aranhas e escorpiões. “Os venenos dos animais mais primitivos consistem principalmente de proteínas, cuja produção exige um alto custo energético, e de alcaloides, moléculas bem menores que as proteínas”, diz ele. É o caso do veneno da jararaca, amarelo viscoso por causa da elevada quantidade de proteínas. “Na outra ponta, temos venenos com muitos peptídeos, de custo energético menor, e esteroides, cuja estrutura química permite muitas variações”, acrescenta, exemplificando com o veneno de escorpião, líquido incolor e fluido, formado principalmente por peptídeos.
Ainda não há regras claras sobre a variabilidade química dos venenos dentro das mesmas espécies. O da cascavel varia pouco e apresenta cerca de 10 componentes básicos, principalmente enzimas que, em segundos, paralisam os músculos e o sistema nervoso de outros animais, de acordo com um estudo de Airton Lourenço Jr., da Universidade Estadual Paulista (Unesp), com base em 112 amostras, colhidas de serpentes jovens e adultas de diferentes regiões do país ou de cativeiro.
No entanto, verificou Pimenta, o da jararaca é uma mistura de centenas de componentes de proporção variável, principalmente peptídeos e enzimas que corroem a pele e o tecido conjuntivo das presas, iniciando a digestão. “A composição dos venenos pode ser redundante, com muitas moléculas com a mesma função, de modo a compensar as variações dos mecanismos de defesa das presas”, diz ele. Às vezes aparecem moléculas sem uma função biológica clara. Podem ser resquícios de outros tempos, na avaliação de Osvaldo Augusto Sant’Anna, pesquisador do Butantan e coordenador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Toxinas. “Componentes dos venenos hoje sem uma função biológica aparente podem ter sido essenciais para a sobrevivência de uma espécie, tendo se conservado ao longo da evolução, e talvez um dia voltem a ser necessários”, diz ele. “Do mesmo modo que reconhecemos a diversidade entre os Homo sapiens, identificando os indivíduos com suas características próprias, devemos reconhecer que há diversidade em uma mesma espécie de Bothrops.”
Os mecanismos de defesa que permitem a aves, às próprias cobras e a alguns mamíferos resistir a venenos normalmente letais também permanecem incertos. A boipeva (Xenodon merremii), uma serpente agressiva, embora não venenosa, especializou-se em comer sapos venenosos, os corpulentos sapos-cururus, do gênero Rhinella, antes chamado de Bufo. Um gambá brasileiro, o Didelphis aurita, da mata atlântica, é totalmente imune ao veneno das jararacas e parcialmente imune ao da cascavel. Quando não têm imunidade, os animais adotam outro comportamento. Os quatis (Nasua nasua) escalpelam os sapos, raspando-os em pedras até tirarem a pele com as glândulas de veneno, comendo só a carcaça – mesmo quando estão em viveiros, longe da mata.
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