Por Daniella Cambaúva
Diante da câmera, o porta-voz da Polícia Militar em São Paulo, major Marcelo Soffner, defende o trabalho dos quase 2 mil soldados durante expulsão dos moradores do assentamento Pinheirinho, em São José dos Campos. “A polícia não bate. Se teve problema, foi pontual”, diz. “A polícia é séria e tem como base o respeito aos direitos humanos, a filosofia de polícia comunitária e a gestão pela qualidade. Tudo o que fazemos fazemos com toda a dedicação necessária”, garantia.
Ao seu lado, o advogado Antonio Donizete Ferreira, de 54 anos, parece não crer no que houve. Pudera: nos últimos três dias, corria por todos os lados da igreja para onde foram levadas as famílias do assentamento evacuado pelos policiais. Sempre cercado por moradores em busca de orientação.
“O que mais me entristece é ver, de um lado, gente pobre, soldado que é filho de operário, que é pobre, é assalariado, batendo em pobre, que está lutando por um teto. Enquanto o dono, que é o Naji Nahas, um criminoso do colarinho branco, está no seu ar-condicionado, dormindo numa cama King Size, enquanto tem uma criança dormindo no chão lá, com dois meses de idade”.
A fala chega como um torpedo, do qual o major não saberia se desvencilhar. “Quem vê o major falando aqui pensa que a polícia é um bando de freiras que tem na mão um rosário e na outra, uma flor”, completou, sem sinal de exaltação, numa calma que não parece vir de militantes do PSTU – pintados, quase sempre, como radicais e avessos ao diálogo.
Pelo contrário. O diálogo, intermediado pelo jornalista Kenedy Alencar e transmitido pela RedeTV, é mais um de uma série de entrevistas dadas Toninho, como é conhecido, nos últimos três dias, desde que teve início a desocupação.
Horas antes da aparição, com uma camisa verde clara, barba feita, cabelo grisalho e alinhado, ele se misturava a um verdadeiro batalhão de militantes, dirigentes sindicais, vereadores e deputados que ofereciam apoio às famílias desalojadas em São José dos Campos.
Um dos seis advogados de defesa das famílias que viviam no disputado terreno de 1.382.000 m² de propriedade do empresário Naji Nahas, Toninho é daquelas figuras que parece não ficar parado nunca. Nem consegue.
Enquanto circula, uma mulher de 60 anos se apresenta a ele. Diz estar desempregada, sem condições de pagar aluguel, e busca qualquer orientação para resolver seu problema: sua casa já foi demolida e ela nem sabe o que aconteceu com o que estava lá dentro.
O trabalho de Toninho com os moradores do Pinheirinho é voluntário. Para a maioria ali, sabe ele, pagar os honorários para um defensor é algo fora da realidade – uma realidade que hoje tem como prioridade resgatar alimentos e objetos deixados nas casas das quais foram expulsos.
A Igreja Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, a algumas quadras da ocupação, abriga desde domingo cerca de mil pessoas que dormem nos bancos de madeira ou em colchões maltrapilhos colocados no chão. Toninho passou uma noite lá.
O saldo da operação deixou nele quatro marcas de tiros de borracha pelo corpo – o que, lamenta ele, são marcas comuns também entre os desabrigados. Algo que não ocorria “nem na ditadura”. Até o retrovisor de seu carro foi atingido por um tiro.
Toninho diz que tenta sempre evitar confusões ou provocações com os policiais – o que ficou claro no enfrentamento ao vivo, com o major, em transmissão nacional. E critica os “agitadores” que sempre aparecem em manifestações para atrapalhar os diálogos.
Filiado ao PSTU, o Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado, desde sua fundação, em 1994, Toninho hoje é o presidente da legenda em São José dos Campos. Sob a sigla, concorreu sem sucesso à prefeitura da cidade em 2008, na eleição vencida por Eduardo Cury (PSDB). Antes, chegou a militar pelo PT, logo que o partido foi fundado. Fazia parte da corrente de esquerda Convergência Socialista. Deixou a legenda em 1992.
Fora do Pinheirinho, carrega um paletó e uma gravata no banco de trás do carro e tem um escritório que divide com outros advogados: “Eu exerço a profissão, este é meu ganha-pão. Trabalho no meu escritório e atuamos muito bem, modéstia às favas”.
A desocupação no Pinheirinho, porém, fez com que ele ficasse ausente do escritório. Mas os colegas de trabalho, garante, são compreensivos. A família também.
A mulher, como ele, é também advogada, também filiada ao PSTU e também esteve no Pinheirinho no domingo. Com orgulho, ele conta que a filha mais velha também seguiu a profissão do pai. As outras duas mais novas ainda são estudantes, e, embora não possam se filiar a partido político, já participam de mobilizações sociais.
Mineiro quase sem sotaque, Toninho nasceu em Guaranésia, perto de São Sebastião do Paraíso, em Minas Gerais, onde ainda moram seus pais. Apesar de ser interrompido a cada três minutos pelo celular, com pedidos de ajuda em meio aos alojamentos, ele tenta manter o humor. “Não conhece Guaranésia? Em Minas, tem duas cidades importantes, Belo Horizonte e Guaranésia, que hoje deve ter uns 20 mil habitantes”.
Ele deixou a pequena cidade e veio a São Paulo em 1977 para estudar e trabalhar. Como tinha concluído apenas o primeiro grau, tentou fazer um curso técnico de eletrônica. “Era caro e difícil. Eu fazia o turno de 48 horas da GM [General Motors]”. Com isso, acabou abandonando temporariamente os estudos.
Em 1979, sua trajetória na militância começou e não parou mais. Sua primeira participação foi na greve geral dos metalúrgicos do ABC convocada por Lula. “Quando o pessoal em São Bernardo entrou em greve, nós entramos em greve aqui na GM também”, conta.
A participação naquela mobilização o levou à sua primeira passagem pela prisão. “Não foi nada demais, tive que ‘tocar piano’, fui fichado, depois liberado”, relata, em tom quase sereno.
Segundo ele, a vida de dirigente sindical o ajudou a continuar os estudos: alguns anos depois, ingressou na Faculdade de Direito da Univap (Universidade do Vale do Paraíba) em São José dos Campos. Depois de terminar o curso, foi aprovado no Exame da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) na primeira vez que fez a prova. “A vida me levou a isso, eu precisava ter uma profissão”.
Conhecido na região devido à militância, Toninho só passou a frequentar o noticiário nacional com o trabalho à frente do assentamento Pinheirinho. Ele contesta até hoje a legalidade da ação, e a forma como foi feita, com a interrupção do diálogo e o desafio às determinações da Justiça Federal.
Sobre seu trabalho como advogado do grupo, ele resume: “É uma emoção a cada dia, uma emoção por ser triste.”
Embora mantenha contato constante com os moradores, sobretudo nos últimos dias, ele não responde quando perguntado qual dos desalojados está hoje em situação mais crítica.
Mas logo entrega: em meio a tantos rostos já conhecidos, uma moradora recebe uma referência especial. “Tem uma senhora que lembra minha mãe. Fico imaginando se minha mãe estivesse ali”.
Fonte: http://www.cartacapital.com.br/sociedade/uma-voz-no-tiroteio/
Diante da câmera, o porta-voz da Polícia Militar em São Paulo, major Marcelo Soffner, defende o trabalho dos quase 2 mil soldados durante expulsão dos moradores do assentamento Pinheirinho, em São José dos Campos. “A polícia não bate. Se teve problema, foi pontual”, diz. “A polícia é séria e tem como base o respeito aos direitos humanos, a filosofia de polícia comunitária e a gestão pela qualidade. Tudo o que fazemos fazemos com toda a dedicação necessária”, garantia.
Ao seu lado, o advogado Antonio Donizete Ferreira, de 54 anos, parece não crer no que houve. Pudera: nos últimos três dias, corria por todos os lados da igreja para onde foram levadas as famílias do assentamento evacuado pelos policiais. Sempre cercado por moradores em busca de orientação.
“O que mais me entristece é ver, de um lado, gente pobre, soldado que é filho de operário, que é pobre, é assalariado, batendo em pobre, que está lutando por um teto. Enquanto o dono, que é o Naji Nahas, um criminoso do colarinho branco, está no seu ar-condicionado, dormindo numa cama King Size, enquanto tem uma criança dormindo no chão lá, com dois meses de idade”.
A fala chega como um torpedo, do qual o major não saberia se desvencilhar. “Quem vê o major falando aqui pensa que a polícia é um bando de freiras que tem na mão um rosário e na outra, uma flor”, completou, sem sinal de exaltação, numa calma que não parece vir de militantes do PSTU – pintados, quase sempre, como radicais e avessos ao diálogo.
Pelo contrário. O diálogo, intermediado pelo jornalista Kenedy Alencar e transmitido pela RedeTV, é mais um de uma série de entrevistas dadas Toninho, como é conhecido, nos últimos três dias, desde que teve início a desocupação.
Horas antes da aparição, com uma camisa verde clara, barba feita, cabelo grisalho e alinhado, ele se misturava a um verdadeiro batalhão de militantes, dirigentes sindicais, vereadores e deputados que ofereciam apoio às famílias desalojadas em São José dos Campos.
Um dos seis advogados de defesa das famílias que viviam no disputado terreno de 1.382.000 m² de propriedade do empresário Naji Nahas, Toninho é daquelas figuras que parece não ficar parado nunca. Nem consegue.
Enquanto circula, uma mulher de 60 anos se apresenta a ele. Diz estar desempregada, sem condições de pagar aluguel, e busca qualquer orientação para resolver seu problema: sua casa já foi demolida e ela nem sabe o que aconteceu com o que estava lá dentro.
O trabalho de Toninho com os moradores do Pinheirinho é voluntário. Para a maioria ali, sabe ele, pagar os honorários para um defensor é algo fora da realidade – uma realidade que hoje tem como prioridade resgatar alimentos e objetos deixados nas casas das quais foram expulsos.
A Igreja Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, a algumas quadras da ocupação, abriga desde domingo cerca de mil pessoas que dormem nos bancos de madeira ou em colchões maltrapilhos colocados no chão. Toninho passou uma noite lá.
O saldo da operação deixou nele quatro marcas de tiros de borracha pelo corpo – o que, lamenta ele, são marcas comuns também entre os desabrigados. Algo que não ocorria “nem na ditadura”. Até o retrovisor de seu carro foi atingido por um tiro.
Toninho diz que tenta sempre evitar confusões ou provocações com os policiais – o que ficou claro no enfrentamento ao vivo, com o major, em transmissão nacional. E critica os “agitadores” que sempre aparecem em manifestações para atrapalhar os diálogos.
Filiado ao PSTU, o Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado, desde sua fundação, em 1994, Toninho hoje é o presidente da legenda em São José dos Campos. Sob a sigla, concorreu sem sucesso à prefeitura da cidade em 2008, na eleição vencida por Eduardo Cury (PSDB). Antes, chegou a militar pelo PT, logo que o partido foi fundado. Fazia parte da corrente de esquerda Convergência Socialista. Deixou a legenda em 1992.
Fora do Pinheirinho, carrega um paletó e uma gravata no banco de trás do carro e tem um escritório que divide com outros advogados: “Eu exerço a profissão, este é meu ganha-pão. Trabalho no meu escritório e atuamos muito bem, modéstia às favas”.
A desocupação no Pinheirinho, porém, fez com que ele ficasse ausente do escritório. Mas os colegas de trabalho, garante, são compreensivos. A família também.
A mulher, como ele, é também advogada, também filiada ao PSTU e também esteve no Pinheirinho no domingo. Com orgulho, ele conta que a filha mais velha também seguiu a profissão do pai. As outras duas mais novas ainda são estudantes, e, embora não possam se filiar a partido político, já participam de mobilizações sociais.
Mineiro quase sem sotaque, Toninho nasceu em Guaranésia, perto de São Sebastião do Paraíso, em Minas Gerais, onde ainda moram seus pais. Apesar de ser interrompido a cada três minutos pelo celular, com pedidos de ajuda em meio aos alojamentos, ele tenta manter o humor. “Não conhece Guaranésia? Em Minas, tem duas cidades importantes, Belo Horizonte e Guaranésia, que hoje deve ter uns 20 mil habitantes”.
Ele deixou a pequena cidade e veio a São Paulo em 1977 para estudar e trabalhar. Como tinha concluído apenas o primeiro grau, tentou fazer um curso técnico de eletrônica. “Era caro e difícil. Eu fazia o turno de 48 horas da GM [General Motors]”. Com isso, acabou abandonando temporariamente os estudos.
Em 1979, sua trajetória na militância começou e não parou mais. Sua primeira participação foi na greve geral dos metalúrgicos do ABC convocada por Lula. “Quando o pessoal em São Bernardo entrou em greve, nós entramos em greve aqui na GM também”, conta.
A participação naquela mobilização o levou à sua primeira passagem pela prisão. “Não foi nada demais, tive que ‘tocar piano’, fui fichado, depois liberado”, relata, em tom quase sereno.
Segundo ele, a vida de dirigente sindical o ajudou a continuar os estudos: alguns anos depois, ingressou na Faculdade de Direito da Univap (Universidade do Vale do Paraíba) em São José dos Campos. Depois de terminar o curso, foi aprovado no Exame da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) na primeira vez que fez a prova. “A vida me levou a isso, eu precisava ter uma profissão”.
Conhecido na região devido à militância, Toninho só passou a frequentar o noticiário nacional com o trabalho à frente do assentamento Pinheirinho. Ele contesta até hoje a legalidade da ação, e a forma como foi feita, com a interrupção do diálogo e o desafio às determinações da Justiça Federal.
Sobre seu trabalho como advogado do grupo, ele resume: “É uma emoção a cada dia, uma emoção por ser triste.”
Embora mantenha contato constante com os moradores, sobretudo nos últimos dias, ele não responde quando perguntado qual dos desalojados está hoje em situação mais crítica.
Mas logo entrega: em meio a tantos rostos já conhecidos, uma moradora recebe uma referência especial. “Tem uma senhora que lembra minha mãe. Fico imaginando se minha mãe estivesse ali”.
Fonte: http://www.cartacapital.com.br/sociedade/uma-voz-no-tiroteio/
Nenhum comentário:
Postar um comentário