Ciclo de greves entre 1978 e 1992 foi fundamental para a democratização brasileira
CARLOS HAAG |
Edição 193 - Março de 2012

Assembleia de funcionários da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos, na praça da Sé, em 1975
Ciclo de greves em vários setores nos anos 1980 e 1990 fizeram parte do processo de construção da democracia brasileira.
“A análise das estatísticas das greves mostra que nenhum dos dois dá conta do fenômeno. O ciclo brasileiro de paralisações comportou-se de forma claramente vinculada às características e ao processo de transição política brasileira para a democracia”, explica o cientista político Eduardo Noronha, professor da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e coordenador do projeto Arquivos das greves no Brasil: análises qualitativas e quantitativas da década de 1970 à de 2000, feito em parceria com o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), e apoiado pela FAPESP, que gerou um banco de dados completo das paralisações, das reivindicações feitas até o resultado final dos conflitos trabalhistas. Além disso, foram feitas 50 entrevistas com líderes sindicais desde os anos 1960 e que irão gerar três volumes a serem lançados em 2013. “Deu-se pouca atenção à relação entre greves e processos políticos, sobrevalorizando as variáveis econômicas ou tratando as políticas de forma genérica, seja mostrando as greves como expressão de conflitos de classe ou político-partidários”, observa. Segundo ele, a variação do volume de greves não se deve a mudanças menores nos indicadores de emprego, renda ou inflação, ou, no campo da política, às oportunidades de ampliação de demandas nos anos eleitorais. “Isso tudo influencia a explosão de paralisações, mas não basta para explicar os momentos de rupturas de um ciclo de greves”, diz.
Para
Noronha, as greves fazem parte da trajetória brasileira de
democratização, de amadurecimento da sociedade brasileira. “Aqui, as
greves não eram só no espírito do ‘abaixo a ditadura’, mas queriam
democracia nos lugares de trabalho. Claro que a luta por salários
melhores era a grande motivação, mas havia também uma luta pela redução
da falta de cidadania dentro das fábricas, onde operários eram
desrespeitados. A ditadura também estava nos lugares de trabalho.” Há
registros de reivindicações grevistas que pediam a liberdade de ir ao
banheiro sem consultar o capataz, entre outros direitos básicos. “As
greves, claro, tinham uma dimensão política, mas não partidária. Os
trabalhadores queriam um novo status na sociedade brasileira.” A
democratização nacional, após um longo período de autoritarismo,
instabilidade econômica e superação do modelo desenvolvimentista, é,
nota o pesquisador, a chave para entender a onda excepcional de greves.
Afinal, desde o início do século XX até o final da democracia populista,
os sindicatos brasileiros não foram capazes de promover um ciclo de
greves com impacto econômico.Em suas pesquisas, Noronha observou a presença de “marcos políticos e econômicos dos governos federais”, de Geisel a Lula, que mudavam a tendência da opinião pública independentemente das variáveis econômicas tradicionalmente valorizadas na análise dos ciclos grevistas, como emprego e inflação. Os dados mais relevantes para o entendimento do ciclo de greves brasileiro são até certo ponto inéditos, pois resultaram de expectativas coletivas associadas aos marcos das gestões governamentais e, secundariamente, às conjunturas políticas e econômicas de cada ano. “O final da década de 1970 é uma ruptura da história das relações de trabalho no Brasil. Nada menos provável do que a greve da Scania em 1978 e, no entanto, foi a mais importante delas, por mostrar que as greves eram possíveis e por despertar a opinião pública”, diz.

Lula discursa na assembleia do Sindicato dos Metalúrgicos em 1980
“Pode-se observar isso na redução das greves entre 1980 e 1982, explicável não apenas pelo aumento do desemprego, mas também pelo atentado do Riocentro, que mostrou as rupturas entre os militares com o programa de liberalização política. Os sindicatos, então, recuaram, pois entenderam que o momento não era favorável para greves e trocaram o ativismo para a organização interna, que levou à criação da Central Única dos Trabalhadores (CUT), em 1983”, conta Noronha. Outro exemplo, segundo o autor, ocorreu com a queda dos indicadores de greve a partir de maio de 1992, quando surgem as denúncias de corrupção do governo Collor, até o fim do ano, com a queda do presidente. “Isso parece confirmar a sensibilidade dos sindicatos em face de uma nova instabilidade política e reforça a hipótese de que as variáveis políticas são essenciais para se entender uma greve.”
Outro marco importante foram as eleições estaduais em 1982. Após um longo período sem diálogo com o Estado, os sindicatos não pouparam os novos governadores oposicionistas eleitos, cobrando-os com greves. “A partir desse contexto em que os riscos da greve haviam diminuí- do e as oportunidades de ganho aumentado, as paralisações não se concentraram mais no setor privado, mas, em especial, cresceram entre os servidores públicos.” As greves, então, dominam o cenário nacional, já que a tendência dos governos estaduais em consolidar sua legitimidade como lideranças democráticas refletiu-se no nível federal: a disposição à negociação dos governadores era um contraponto à prática repressiva do governo federal. Alguns segmentos do governo, diante das derrotas eleitorais, passaram a se aproximar dos sindicalistas com propostas de reformas da CLT.
O
governo Sarney, em 1985, legitimou as lideranças sindicais como
interlocutores válidos para o Estado e as greves ajudaram a consolidar
um novo padrão de relações entre empregados e empregadores com a
disseminação das negociações. Mas as greves brasileiras eram movidas por
componentes que fugiam ao senso comum. “Os salários, em todo o mundo,
são a pauta principal das greves e aqui não foi diferente. No caso
brasileiro, porém, as greves aumentam não quando os salários caem, mas
quando podem subir. Ou seja, as greves são deflagradas quando os
trabalhadores acreditam que seja possível obter ganhos salariais, não
importando o quanto os salários são percebidos como baixos ou
adequados”, explica. Assim, entre 1988 e 1991, apesar de o rendimento
real não ter caído, as greves crescem nos dois setores que, somados,
ultrapassaram a marca de 2 mil greves e cerca de 185 milhões de jornadas
não trabalhadas.Apesar disso, segundo Noronha, foram raras as paralisações que apresentaram demandas políticas, embora a evolução do nível e do padrão de conflitos estar claramente marcada pelos principais momentos políticos da década de 1980, o que lhes dá outra dimensão além da corporativa. “A flutuação do conflito trabalhista no Brasil seguiu de perto os passos da transição brasileira. Primeiro, porque o movimento sindical avançou (e soube recuar) a cada etapa do processo de liberalização do regime autoritário. Depois, porque a incorporação da classe trabalhadora e da liderança sindical no processo de transição se deu por meio das possibilidades abertas para a expressão de suas demandas, e não pela sua participação nos pactos políticos que definiram a transição. Se a greve não foi o único canal de manifestação desses segmentos, foi a forma mais eficaz de expressão de descontentamento social e político”, avalia. À medida que a classe trabalhadora se tornou capaz de ganhar força sobre os empresários, pegos de surpresa nas primeiras greves, o conflito de interesses entre capital e trabalho cresceu cada vez mais na arena política e menos na industrial.

Greve dos metalúrgicos de São Paulo (SP) em 1979
“As novas condições dos anos 1990 e o avanço das instituições democráticas vão tirar a greve do centro das estratégias dos sindicatos. Atualmente, elas só ocorrem quando os mecanismos de negociação não funcionam, como no setor público, onde há paralisações violentas e longas”, analisa o economista Claudio Dedecca, professor da Universidade Estadual de Campinas, e coordenador do projeto Brasil século XXI, população, trabalho e sociedade. “Não temos mais uma cultura de conflito no mundo do trabalho. A greve dos policiais na Bahia mostrou isso ao não se nacionalizar como era o objetivo dos grevistas”, diz. Para o pesquisador, a greve no Brasil sempre foi complexa. “É possível vivermos numa situação com grande número de empregos e não haver greve, porque as instituições estão funcionando em prol do trabalhador.” O economista lembra ainda que os grandes setores sempre balizaram as greves no passado e como a paralisação deixou de ser uma estratégia, os setores menos organizados têm ainda menos estímulo para parar.
| O Projeto |
| Arquivos das greves no Brasil – nº 2008/03561-5 |
| Modalidade |
| Auxílio Regular a Projeto de Pesquisa |
| Coordenador |
| Eduardo Noronha – UFSCar |
| Investimento |
| R$ 163.145,89 (FAPESP) |
Essa novidade política, porém, não foi acompanhada diretamente pela renovação dos mecanismos de negociação. “A partir da redemocratização, as relações trabalhistas passaram a se caracterizar pelo descompasso entre as instituições trabalhistas e legislativas, ainda arcaicas, e a modernização econômica e social do país. Há setores que fogem a essa regra, como o metalúrgico e o siderúrgico, de sindicatos fortes, que obrigaram as empresas a modernizar a sua gestão de RH se antecipando às necessidades dos trabalhadores. Mas são exceções”, nota o economista Hélio Zylbers- tajn, professor da USP e presidente do Instituto Brasileiro de Relações de Emprego e Trabalho. “O setor público está muito longe dessa realidade, ainda imperando um modelo de greves longas graças a um sistema de negociação que favorece o impasse. Como o setor não mexe no capital e não impõe custos diretos às duas partes, mas se volta para o público, há pouco interesse em estabelecer mecanismos mais modernos de negociação ou arbitragem.” Segundo Hélio, o país negligenciou a importância estratégica da gestão das relações de trabalho, preferindo o litígio na Justiça.

Metalúrgicos da Volkswagen do Brasil durante greve no ABC paulista em 1978
Fonte: http://revistapesquisa.fapesp.br/2012/03/29/quando-parar-%C3%A9-ir-para-a-frente/
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