Será que podemos compreender o mundo sem ter alguma espécie de crença?
Essa não só é uma das questões centrais da dicotomia entre a ciência e a
fé como também informa de que modo um indivíduo se relaciona com o
mundo.
Se contrastarmos explicações míticas e científicas da realidade, podemos
dizer que mitos religiosos procuram explicar o desconhecido com o
"desconhecível", enquanto que a ciência procura explicar o desconhecido
com o "conhecível".
A tensão vem da crença de que duas realidades independentes existem em
pé de igualdade; uma que pertence a este mundo (e que é, portanto,
conhecível), e outra fora dele (e que é, portanto, desconhecível ou
inescrutável).
Tanto o cientista quanto o crente acreditam, se bem que a crença de cada
um é bem diferente. A do cientista se manifesta de forma clara quando
faz uma extrapolação de uma teoria ou modelo além de seus limites
testados.
Por exemplo, ao afirmar que "a gravidade atua da mesma forma em todo o
Universo", ou "a teoria da evolução por seleção natural se aplica a
todas as formas de vida, inclusive as extraterrestres", não sabemos se
essas extrapolações são verdadeiras. Mas, dado o sucesso das teorias em
que se baseiam, vale a pena apostar nelas. Testes futuros confirmarão
(ou não) a veracidade da extrapolação.
Sem esse tipo de fé no poder da extrapolação, a ciência não avançaria.
Eis um exemplo. A teoria da gravitação universal de Newton, explicada no
Livro 3 do seu monumental tratado "Princípios Matemáticos da Filosofia
Natural", deveria ter sido chamada de "teoria da gravitação do Sistema
Solar", já que, no final do século 17, não existia como testá-la.
Porém, Newton foi em frente e supôs que a força da gravidade
--proporcional à massa dos corpos e inversamente proporcional ao
quadrado de sua distância-- funcionaria em todo o Cosmo: "Se foi
estabelecido que todo corpo na vizinhança da Terra gravita em direção à
ela em proporção à sua matéria, teremos de concluir que todos os corpos
exercem gravitação mútua".
Mais tarde, em carta datada de 10 de dezembro de 1692 e endereçada a
Richard Bentley, teólogo de Cambridge, Newton usa a mesma extrapolação
para argumentar que o Universo deve ser infinito.
Se a gravidade atuasse sobre um Universo finito, pensou Bentley, não
causaria o colapso de toda a matéria no seu centro? Newton concordou que
esse seria o destino da matéria num universo finito.
Porém, sugeriu, "se a matéria estiver distribuída de forma homogênea em
um Universo infinito, não colapsaria em uma única massa; um pouco de
matéria se aglomeraria em um lugar, um pouco mais em outro, constituindo
um número infinito de grandes massas, espalhadas pelas distâncias do
espaço".
A crença de Newton na natureza universal da gravidade era tão forte que o
levou a especular com confiança sobre a extensão espacial do Cosmo.
Einstein fez algo semelhante, mas temos de deixar essa história para
outra semana.
Para avançar em suas teorias, o cientista precisa ter a coragem de
arriscar e de estar errada. Só quando nos atrevemos a arriscar e errar é
que podemos, talvez, enxergar um pouco mais longe do que os outros.
Marcelo Gleiser é professor de física e astronomia do
Dartmouth College, em Hanover (EUA). É vencedor de dois prêmios Jabuti e
autor, mais recentemente, de "Criação Imperfeita". Escreve aos domingos
na versão impressa de "Ciência".
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