terça-feira, 4 de setembro de 2012

Quebra-cabeça em expansão


Bóson recém-descoberto pode revelar as primeiras pistas de uma nova física das partículas elementares 

IGOR ZOLNERKEVIC e RICARDO ZORZETTO
Edição 198 - Agosto de 2012

Nos próximos cinco meses o maior acelerador de partículas do mundo, o Large Hadron Collider (LHC), instalado na fronteira da França com a Suíça, vai funcionar a todo vapor para produzir uma montanha a mais de dados e tentar revelar a real identidade da mais recente partícula elementar descoberta pelos físicos. No último dia 4 de julho, durante a Conferência Internacional de Física de Altas Energias, o mais importante evento anual da física de partículas, pesquisadores da Organização Europeia para a Pesquisa Nuclear (Cern), a que está vinculado o LHC, anunciaram ter encontrado uma nova partícula elementar que tudo indica ser o bóson de Higgs, a peça que faltava para completar uma bem-sucedida teoria física chamada Modelo Padrão. Essa teoria explica do que é feita a matéria e como ela se comporta no nível subatômico. “Este é o momento mais empolgante da física de partículas desde os anos 1970”, declarou à Pesquisa FAPESP o físico Joseph Incandela, coordenador de um dos experimentos no LHC. Até o final deste ano, o LHC deve provocar o choque de mais 3 quatrilhões de prótons acelerados a velocidades próximas à da luz no interior de um anel com 27 quilômetros de circunferência construído a 100 metros abaixo da superfície para tentar caracterizar em detalhe a nova partícula. Pode parecer um contrassenso, mas os físicos torcem para que os dados a serem coletados mostrem que a partícula recém-identificada, ainda que seja mesmo o bóson de Higgs, não se comporte como esperavam. O motivo é que, se isso ocorrer, eles terão pela primeira vez em 40 anos descoberto algo realmente inusitado na física e conseguirão avançar um pouco mais na compreensão de como o Universo se desenvolveu em seus primeiros instantes de vida. Se, no entanto, essa partícula for exatamente como haviam imaginado, os físicos terão chegado a um beco sem saída: o Modelo Padrão terá sido confirmado, mas não haverá pistas de como aperfeiçoá-lo para responder às questões em aberto sobre o Universo.
Completo, o Modelo Padrão só explica a existência de 4% do que forma o Cosmo. Mas nada diz sobre a origem dos 23% de matéria escura e dos 73% de energia escura que precisam existir para que o Universo seja como se imagina que é. Além disso, o Modelo Padrão praticamente não dá informação sobre o que teria ocorrido no primeiro segundo após o Big Bang, a explosão que teria gerado o Universo há 13,7 bilhões de anos. Foi nesse instante misterioso que surgiram as quatro forças fundamentais da natureza – a gravitacional, a eletromagnética, a nuclear fraca e a nuclear forte, originadas provavelmente de uma única força inicial – que permitiram a formação da matéria (ver infográfico na página 52). Para esclarecer um pouco mais do que aconteceu nesse precioso segundo, os físicos desenvolveram teorias que expandem o Modelo Padrão e preveem a existência de mais partículas. Como nenhuma dessas partículas foi detectada por ora, não se sabe qual das principais candidatas – as teorias da supersimetria, dos modelos compostos e das dimensões extras – é a correta (ver infográfico nas páginas 46 e 47). A expectativa dos físicos é que, ao definir as características do Higgs ou ao encontrar uma nova partícula, eles encontrem evidências favorecendo uma dessas propostas.
Procurado há ao menos três décadas, o bóson de Higgs é a peça-chave do Modelo Padrão. Desenvolvido ao longo dos anos 1960, o Modelo Padrão descreve o que acontece quando partículas subatômicas são aceleradas até quase a velocidade da luz e colidem entre si, como ocorre no LHC. Segundo a famosa equação de Einstein que estabelece que a energia é equivalente ao produto da massa multiplicada pelo quadrado da velocidade da luz (E=mc2), a energia dessas colisões pode ser convertida em massa, fazendo, como que por mágica, surgirem do vácuo novas partículas. Em geral, as partículas com muita massa vivem frações de segundo, rapidamente decaem, ou seja, transformam-se em uma cascata de partículas mais leves que deixam traços em detectores como o CMS e o Atlas do LHC, cuja construção consumiu cerca de US$ 9 bilhões (ver Pesquisa FAPESP nº 147).
O resultado dos decaimentos pode ser calculado pelas equações do Modelo Padrão, cujas propriedades matemáticas determinam como as partículas interagem. No início de seu desenvolvimento, essas equações pareciam funcionar muito bem, exceto por um detalhe: elas previam que todas as partículas deveriam ser como os fótons, que não têm massa e, por isso, viajam sempre à velocidade da luz. Se isso de fato ocorresse com todas as partículas, o mundo como se conhece não existiria porque elas nunca estariam em repouso, o que permite a existência dos átomos. Para consertar esse detalhe teórico crucial, Peter Higgs e outros físicos propuseram em 1964 a existência de um campo de força que permearia todo o espaço e interagiria com intensidade diferente com cada tipo de partícula, dando a elas massas distintas. A prova de que esse campo existe seria a descoberta de uma partícula que poderia emergir dele durante colisões de alta energia: o bóson de Higgs, aparentemente encontrado agora no Cern (ver quadro das páginas 48 e 49).
“Tudo o que se mediu até agora leva a crer que descobrimos o bóson de Higgs”, afirma o físico Sérgio Novaes, líder de um grupo de pesquisadores do Instituto de Física Teórica da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e da Universidade Federal do ABC que, com financiamento da FAPESP, colabora na análise dos dados do detector CMS. Tanto o CMS quanto o Atlas obtiveram agora sinais de que existe um novo bóson com massa entre 125 e 126 giga elétrons-volt (GeV) – um GeV corresponde a um bilhão de elétrons-volt, a unidade de energia usada para medir a massa das partículas. A probabilidade de que o sinal medido seja fruto do acaso é de uma em 3,5 milhões. A nova partícula parece também decair como o Modelo Padrão prevê, mas os pesquisadores precisarão analisar muito mais colisões para determinar, com o mesmo nível de certeza, tanto o padrão de decaimento como outras propriedades do bóson. Incandela estima que o LHC consiga determinar essas características da nova partícula com maior precisão até o final do ano. As incertezas devem diminuir ainda mais a partir de 2015, quando o LHC voltará à ativa depois de passar dois anos desligado para os ajustes que devem elevar a energia de suas colisões de 8 para 13 tera elétrons-volt (TeV) e aumentar em 10 vezes o número de colisões acumuladas até 2018.
Se confirmado, o bóson de Higgs será a primeira partícula elementar de uma classe especial, enigmática para os teóricos. “Essa classe de partículas é algo misteriosa, porque sua massa é muito difícil de estabilizar”, diz Incandela, tocando no calcanhar de aquiles do Modelo Padrão, conhecido como o problema da hierarquia.
Esse problema surge quando se assume que o Modelo Padrão é uma teoria que explica como partículas e forças interagem desde o instante inicial do Universo, o momento zero da criação, quando os níveis de energia eram trilhões de vezes maiores que os alcançados no LHC – é o que em física se chama de escala de Planck, a maior energia que poderia existir no Universo. Nessas condições, a força gravitacional, que em geral não afeta as partículas por ser muito menos intensa do que as outras três forças, começa a se fazer sentir. Ao se fazer essa suposição, a teoria prevê que certas interações do bóson de Higgs – com ele próprio e com as demais partículas – fariam a sua massa crescer violentamente e ser muitas vezes maior do que se esperaria observar. O Modelo Padrão só fornece a massa correta do Higgs quando se assume que algum efeito desconhecido contrabalança o ganho absurdo de massa.
Para muitos físicos, a natureza desse efeito poderia ser revelada em colisões de partículas realizadas na faixa de energia que o LHC explora hoje. Depois da busca do bóson de Higgs – apelidado, a contragosto dos físicos, de “partícula de deus” por sugestão do editor do livro de 1993 do físico Leon Lederman e do divulgador de ciência Dick Teresi, cujo título passou de The Goddamn Particle para The God Particle –, essa foi a principal motivação para construir o LHC. “O problema da hierarquia organiza o nosso pensamento de por que e como estender o Modelo Padrão”, afirma Gustavo Burdman, professor do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (USP). A busca de uma solução para o problema da hierarquia é o que norteia há décadas o trabalho dos físicos teóricos. Eles tentam explicar esse efeito de formas distintas nas teorias da supersimetria, dos modelos compostos e das dimensões extras. Cada uma oferece uma estratégia para estabilizar a massa do bóson de Higgs.
De longe, a candidata mais estudada é a supersimetria. Essa teoria prevê que, para cada partícula do Modelo Padrão, exista uma partícula a mais, chamada de superparceira. As partículas supersimétricas subtraem parte da massa do Higgs, na mesma proporção em que as partículas do Modelo Padrão acrescentam massa ao bóson, eliminando, assim, o problema da hierarquia.
A supersimetria se tornou popular entre os físicos por sua elegância matemática, que facilita os cálculos e oferece soluções não só para o problema da hierarquia. As superparceiras mais leves são ótimas candidatas a ser os constituintes da matéria escura. Além disso, a supersimetria possibilita unificar as forças eletromagnética, nuclear forte e nuclear fraca do Modelo Padrão em uma escala de energia próxima à que reinava nos primeiros instantes após o Big Bang (ver infográfico acima).
A existência da supersimetria é necessária para a consistência da teoria das supercordas, que busca unificar todas as forças, inclusive a gravitacional. “É uma teoria bonita, com propriedades muito boas; seria interessante se existisse”, diz o físico Oscar Éboli, da USP, que busca evidências de supersimetria nos dados do LHC.
Há inúmeras versões da supersimetria. Os modelos mais simples previam que tão logo o LHC fosse acionado, em 2008, as superparceiras apareceriam em profusão. Mas nenhum sinal delas foi visto até agora. Para piorar, a massa do que parece ser o bóson de Higgs é maior do que a prevista nesses modelos. “Os modelos mais óbvios estão numa situação extremamente difícil”, diz Éboli. Isso significa que a teoria pode ser bem mais complicada e as massas das superparceiras maiores do que se pensava. “Quanto maior a massa, menor o interesse de certas áreas da física, porque deixa de explicar o problema da hierarquia”, diz Ricardo Matheus, professor do Instituto de Física Teórica da Unesp.
Por conta dessa falta de evidências, teorias alternativas à supersimetria vêm sendo mais exploradas nos últimos anos. Uma classe delas é a dos modelos compostos, que afirmam que o bóson de Higgs e possivelmente outras partículas do Modelo Padrão são compostos de partículas ainda mais elementares. O fato de o Higgs ser formado por outras partículas mudaria as suas propriedades, eliminando o efeito acumulador de massa que causa o problema da hierarquia. Se essa teoria estiver correta, porém, a história da física se repetirá mais uma vez. Até os anos 1960, acreditava-se que prótons, nêutrons e outras partículas como o píon, descoberto pelo brasileiro César Lattes em 1947, eram elementares. Com a ascensão do Modelo Padrão, ficou claro que elas eram compostas por partículas ainda mais fundamentais: os quarks. Assim como a supersimetria, os modelos compostos preveem a existência de novas partículas, ainda não observadas – algumas versões desses modelos já foram descartadas. “Os modelos compostos estão em tensão com os dados há muito tempo”, diz Incandela, “mas não podemos descartá-los completamente”.
Outra solução para o problema da hierarquia é a existência de dimensões espaciais extras, mais uma possibilidade ainda sem comprovação experimental. Difíceis de serem visualizadas até pelos físicos, essas dimensões poderiam, em princípio, ser detectadas no LHC, desde que as partículas responsáveis pela força gravitacional, os grávitons, existam em níveis de energia da ordem de tera elétrons-volt. Para ser verdade, a energia do instante zero do Big Bang deveria ser trilhões de vezes menor do que a que se calcula que tenha sido. Ou seja, a escala de Planck estaria errada e o bóson de Higgs não acumularia massa por já ter atingido a maior massa possível. Uma das consequências dessa teoria é que o Universo seria um segundo mais novo.
O grupo de Novaes vem buscando sinais de dimensões extras nos dados obtidos pelo detector DZero, do recém-desativado acelerador norte-americano Tevatron, e pelo LHC. Em março deste ano a colaboração DZero publicou na Physical Review Letters uma análise conduzida por Angelo Santos, aluno de doutorado de Novaes, estabelecendo os primeiros limites experimentais para a existência de certo modelo de dimensão extra.
Tanto o Tevatron como o LHC, porém, já descartaram dimensões extras grandes o suficiente para serem percebidas com energias de até 2 TeV. Pode ser que, ao elevar a energia das colisões, o LHC encontre nos próximos anos evidências de que existem dimensões extra menores. Muitas das teorias de dimensões extras, no entanto, fazem previsões quase idênticas às dos modelos compostos, o que não permitiria distinguir uma da outra. “Essa é uma discussão que ainda vai aparecer”, suspeita Burdman.
“Ainda não vimos nada que esteja significativamente em desacordo com as expectativas de um Higgs do Modelo Padrão”, comenta Incandela sobre os resultados apresentados em 4 de julho. Ele reconhece, entretanto, que há uns poucos sinais de que o bóson de Higgs pode não estar se comportando como o esperado. “Esses indícios podem se tornar significativos até o final do ano, mas também podem facilmente desaparecer”, diz. O indício que mais chamou a atenção até o momento é a transformação do novo bóson em pares de fótons, que parece ocorrer em uma proporção maior que a esperada. O Modelo Padrão prevê em quais partículas o bóson de Higgs pode se transformar e com que frequência cada uma delas aparece (ver figura da página 51).
Em uma análise publicada um dia depois do anúncio da descoberta, Éboli e colegas dos Estados Unidos e da Espanha mostraram também que a produção do provável bóson de Higgs no LHC é cerca de metade da prevista pelo Modelo Padrão.








Muitos trabalhos publicados desde 4 de julho especulam que tanto o excesso de fótons quanto a baixa produção de Higgs são provocados pela influência de partículas superparceiras. Éboli compara a confirmação desses sinais a um teste para verificar se uma moeda é ou não honesta – e, uma vez lançada para o alto, tem uma chance igual de dar cara ou coroa. “Se uma moeda é jogada 10 vezes para o alto e se obtêm 7 caras e 3 coroas, pode-se dizer que há uma indicação leve de que talvez a moeda não seja honesta”, diz. Essa hipótese só pode ser realmente confirmada se a moeda for jogada muito mais vezes. Pelo mesmo motivo, só será possível confirmar se o decaimento do bóson em fótons está ocorrendo em uma taxa anormal se forem analisadas muito mais colisões. “O erro experimental nos decaimentos ainda é grande e precisamos tomar mais dados para verificar que se trata mesmo do Higgs do Modelo Padrão”, comenta Éboli.
“Este ano o jogo dos teóricos é prestar atenção nos dados e responder rapidamente”, diz Matheus, da Unesp, que compara a situação atual dos físicos à de Cristóvão Colombo prestes a descobrir a América. Burdman concorda: “A física pode mudar de um dia para o outro”.

Artigos científicos
ABAZOV, V. M. et al. Search for Universal Extra Dimensions in pp- Collisions. Physical Review Letters. 30 mar. 2012.
CORBETT, T. et al. Constraining anomalous Higgs interactions. http://arxiv.org/pdf/1207.1344.pdf.

Fonte: http://revistapesquisa.fapesp.br/2012/08/10/quebra-cabeca-em-expansao/

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