Guerra biológica no mar
Introduzida por plataformas de petróleo, espécie de coral originária do Oceano Pacífico hoje trava uma batalha contra a biodiversidade marinha nativa da Ilha Grande
Desligar o motor da embarcação na Lagoa Azul, em Ilha Grande — onde as águas são límpidas, calmas e estão protegidas por pequenos montes de Mata Atlântica — e não ouvir nada além do vento. Pareceria um pacífico oásis, se não soubéssemos que sob o espelho d’água trava-se uma guerra cujos gritos não podem ser ouvidos. Com tentáculos de cores em tons de fogo num espetáculo de balé majestoso aos olhos, o chamado coral-sol, que engana por sua beleza, vem vencendo uma batalha contra a biodiversidade marinha da localidade.
A espécie exótica chegou à Baía da Ilha Grande, no Estado do Rio, na década de 1980, trazida por plataformas de petróleo, segundo pesquisadores. Originário do Oceano Pacífico, acredita-se que o coral tenha viajado incrustado nas estruturas das plataformas e encontrado um ambiente adequado para sua proliferação nos costões rochosos da baía. Hoje, ele se aloja não apenas na Lagoa Azul, mas sim em 900 quilômetros de costões, e cresce numa velocidade de três quilômetros ao ano, se fosse posto numa forma linear.
O alastramento de dois tipos de coral-sol (o Tubastraea coccinea e o Tubastraea tagusensis) é prejudicial para o equilíbrio do ecossistema, já que eles vem ganhando espaço de outras espécies nativas. Entre elas, o chamado coral-cérebro, que é encontrado apenas no litoral brasileiro, e pode ser expulso de algumas áreas onde o coral-sol é predominante. Os mexilhões também estão sofrendo com a força dos cnidários. A invasão dos corais, somada a outras questões ambientais, tem sido responsável pela diminuição da população desses moluscos na baía, como afirmam pescadores locais. Além de afetar as espécies nativas, a predominância deste coral pode levar a outros prejuízos para o meio ambiente:
— A tendência é a diminuição do número de peixes — alertou coordenador do Projeto Coral-Sol, Joel Creed, professor do Laboratório de Ecologia Marinha da Uerj. — A abundância do coral-sol provoca uma mudança alimentar dos peixes e uma competição maior pelos mesmos recursos.
Os recifes de coral são como usinas de reciclagem e produção de alimento para os seres vivos locais, o que não ocorre no caso do coral do Pacífico, como alerta o pesquisador:
— Os corais promovem a reciclagem de material, como do carbonato de cálcio, que é disponibilizado novamente no ambiente e serve de alimento para uma série de organismos. Mas no caso do coral-sol, este componente é retido — explicou Creed.
Uma ameaça nacional
Apesar de ser uma ameaça maior à Ilha Grande, onde ele dominou inclusive ilhotas próximas a ela, o vilão do mar já foi documentado por cientistas em outros pontos do litoral brasileiro. De acordo com o Instituto de Biodiversidade Marinha, há registros do coral-sol na Ilha do Arvoredo, em Santa Catarina; em Guarapari, no Espírito Santo; em Arraial do Cabo e nas Ilhas Cagarras, no Rio de Janeiro; em diversas ilhas do litoral paulista, como Vitória, Alcatrazes e de Búzios. E mais recentemente, ele foi encontrado também na Baía de Todos os Santos, no litoral baiano.
Além de afetar a biodiversidade marinha, o temor de especialistas com relação à espécie é que ela chegue ao Arquipélago de Abrolhos, localizado a 70 quilômetros do município de Caravelas, na Bahia. Lá estão registrados, segundo o Ministério de Meio Ambiente (MMA), os maiores e mais ricos complexos de recifes de coral de todo o Atlântico Sul Ocidental. Além disso, no Parque Nacional Marinho dos Abrolhos, encontram-se todas as espécies de corais existentes no Brasil, entre eles o coral-cérebro.
O coral-sol é considerado uma espécie exótica invasora, ou seja, foi introduzida num determinado bioma pela ação humana, conseguiu se reproduzir naquele ambiente, além de se tornar uma praga local. Uma série de outras espécies marinhas são introduzidas em ecossistemas de maneira acidental, por exemplo, por aves migratórias e correntes marinhas. Quando ocorre pela ação humana, configura-se crime ambiental. A forma predominante é a água de lastro — 26% do total, segundo o MMA. Essa água é usada para estabilizar navios de cargas quando vazios. Ela é alvo de forte normatização com o objetivo de diminuir os danos ambientais. Outra é a bioincrustação (20%), que ocorre quando espécies ficam incrustadas em cascos de navios e plataformas. Sobre essa prática, praticamente não há controle.
Foco de infestação na Enseada do Bananal
Acredita-se que o foco de colonização do coral-sol tenha sido na Enseada do Bananal, na Ilha Grande, a poucos quilômetros de onde se encontram plataformas petrolíferas. Hoje, há registros da espécie próximo até de Paraty, separada por cerca de cem quilômetros da ilha.
— Ao que tudo indica, houve uma introdução pontual no Bananal. Há fotos, publicações científicas e denúncias de mergulhadores — afirmou Joel Creed, coordenador do Projeto Coral-Sol e professor do Laboratório de Ecologia Marinha da Uerj.
Como o coral vinha vencendo a batalha por território contra as espécies marinhas nativas, a ajuda teve que vir de cima. Na tentativa de controlar a dispersão do animal marinho, foi criado o Projeto Coral-Sol, sob supervisão do Instituto de Biodiversidade Marinha e da Uerj. De marretas em punho, os mergulhadores combatem a espécie invasora com as próprias mãos. O trabalho é lento e cuidadoso, mas já conseguiu retirar cem mil corais dos costões desde 2007, quando eles adquiriram licença do Ibama para a remoção.
— A retirada de corais do seu ambiente marinho configura crime ambiental. O interessante é que revertemos este raciocínio ao comprovar que a espécie estava sendo prejudicial à vida aquática. Apenas com a licença do Ibama é possível fazer este processo de remoção — explicou Creed.
Mas nem o reforço dos pesquisadores e da comunidade de Ilha Grande tem conseguido controlar a dispersão da espécie invasora.
— Nossos esforços não são suficientes pra contê-los, eles continuam a se expandir. Só para se ter ideia, a última estimativa, de cinco anos, apontou para cerca de três milhões de colônias apenas na baía — alerta a gerente do Projeto Coral-Sol, Amanda Andrade.
Atualmente sob o patrocínio da Petrobras Ambiental, o projeto ficará órfão no final do ano, quando termina o contrato com a companhia de petróleo. O governo estadual diz apoiar o projeto e ainda informa ter cedido uma espaço, localizado no Abraão, área mais urbanizada de Ilha Grande, onde funciona a sede e um pequeno museu aberto a visitantes. De acordo com a Secretaria Estadual do Ambiente, está sendo concluído um Plano de Monitoramento de Espécies Exóticas do estado, do qual fará parte um programa para controle do coral-sol.
Não é apenas este coral que afeta a biodiversidade marinha da reserva ambiental. O Projeto Coral-Sol registrou outras espécies potencialmente agressivas, como uma alga verde (Chlorophyta), uma ostra (Isognomon bicolor), um mexilhão (Myoforceps aristatus) e até um siri (Charybdis hellerii).
Educação para conter coral
Na Ilha Grande os corais não estão localizados em grandes profundidades. A maioria está a cerca de dez metros da superfície, o que facilita a remoção, que não depende de equipamento de mergulho profissional e pode ser feita pela própria comunidade. O projeto conta com 20 catadores de coral-sol, moradores da ilha, que são na sua maioria pescadores, barqueiros e estudantes. Eles recebem treinamento de biólogos para reconhecer o invasor e retirá-lo sem afetar outras espécies nativas.
O estudante Rafael Santos, de 19 anos, recebe R$ 150 por dia de coleta, que não é diária. Pois para dar viabilidade ao trabalho, são organizados mutirões periódicos. Ele mergulha há um ano e diz estar envolvido na atividade:
— Mudei muito a minha visão. Eu não via o coral como uma ameaça, hoje eu sei que ele faz mal, sei que ele está tomando o espaço do coral-cérebro — conta Rafael, que já faz planos. — Eu estou no supletivo, muito provavelmente vou cursar biologia para continuar isto que já estou fazendo.
A remoção é feita por catadores ou biólogos, enquanto que o monitoramento de dispersão é essencialmente feito por mergulhadores.
— Nós do projeto realizamos o trabalho, mas também precisamos muito do engajamento dos mergulhadores, sobretudo para denúncias de novos focos — afirmou Creed.
Outra licença recém-adquirida pelo projeto é a de comercialização do coral, também uma medida inédita do Ibama. Desta forma, além de agregar a comunidade na retirada dos animais marinhos, eles também poderão virar artesanato. Hoje, o esqueleto do coral, que fica branco depois de morto, é vendido na sede. Mas a ideia é agregar valor a ele, revertendo a lógica do comércio ilegal de corais.
Esta iniciativa está ainda embrionária, e a educadora ambiental do projeto, a bióloga Camila Meireles, é quem percorre, casa por casa, toda a Ilha Grande, tentando reunir artesãos à nova proposta. No Bananal, ela visitava a dona-de-casa Ledinéia da Conceição, de 39 anos.
— Eu vou fazer um abajur com este coral — imaginava a moradora que tem três filhos.
O principal desafio de Camila é, na verdade, explicar sobre o invasor, que está se tornando popular entre os moradores.
— Eu faço associações. Por exemplo, há um tempo atrás, houve uma infestação do caramujo africano, que invadia hortas e jardins. Eles entendiam que a espécie era nociva para o nosso ambiente, da mesma forma que o coral-sol é prejudicial para o fundo do mar. É um trabalho lento de convencimento, mas essencial para a manutenção do programa — disse a bióloga.
Trajeto perigoso na Bahia
O litoral brasileiro já perdeu 80% de seus recifes de coral nos últimos 50 anos devido à extração, à poluição ambiental e às mudanças climáticas, segundo o relatório “Monitoramento de recifes de corais do Brasil”, divulgado este ano pelo Ministério do Meio Ambiente. Além destes fatores, a competição com espécies exóticas invasoras também representa um risco de diminuição dos corais nativos. Só do coral-sol, foram identificados mais 200 pontos de ocorrência no Brasil.
Em 2007, houve a primeira notificação oficial de que ele tinha atingido a Baía de Todos os Santos, na Bahia. O registro ocorreu num popular naufrágio, o Cavo Artemidi — a 21 metros de profundidade e a 6,5 quilômetros do Farol da Barra, em Salvador —, local muito procurado por mergulhadores mais experientes. Diferentemente de Ilha Grande, ali a profundidade dificulta o controle da espécie.
— Visitamos o naufrágio recentemente, e ele está bastante infestado, talvez em torno de 40% da embarcação — informou a professora do Instituto de Biologia da UFBA, Carla Menegola, colaboradora do Projeto Coral-Sol. — Como ele está na ponta da baía, quase em mar aberto, nosso receio é que venha a dispersar suas larvas, tanto para o interior de Salvador, como, por exemplo, para o Arquipélago de Abrolhos, o que seria um desastre.
— Ali há espécies endêmicas, que só ocorrem aqui no Brasil. Abrolhos sustentam uma vida marinha muito intensa, são um ambiente ainda virgem, sem poluição, usado para se estudar as relações ecológicas como ocorrem de fato no oceano — exemplifica.
Na região, o coral também foi notado no Recife dos Cascos e na Marina de Itaparica. Por enquanto, a retirada só pode ser feita visando à pesquisa e em pequena escala, já que o Ibama ainda não emitiu licença para a remoção. Eles estão em fase de capacitação de mergulhadores e de formação de parcerias.
Queda de braço debaixo d’água
O controle e prevenção de espécies marinhas invasoras habitualmente esbarra em controvérsias, já que há pouca regulação e a maioria das formas de introdução está associada a atividades com importância econômica, como a pesca, a distribuição de mercadorias ou a produção de petróleo. Entre elas, duas formas relacionadas ao transporte marítimo são potencialmente preocupantes: a água de lastro e a bioinscrustação. No caso da Ilha Grande, o próprio coral-sol, cuja introdução se deu por plataformas na década de 1980, foi um dos protagonistas de uma polêmica recente envolvendo atores políticos e também do mercado petrolífero.
Dez meses após o anúncio, a criação da Área de Proteção Ambiental Marinha da Baía da Ilha Grande (APA) pelo governo estadual não saiu do papel. Lançado na esteira de um acidente ambiental em dezembro de 2011 — no qual dez mil litros de óleo foram despejados na baía durante um erro na troca da água de lastro —, o projeto tinha como objetivo aumentar o controle de tráfego e operação de embarcações na região. Sobre sua não conclusão, o secretário estadual do Ambiente, Carlos Minc, justifica:
— O negócio da APA ficou sem clima.
O secretário explica ter acabado sem apoio para a criação da APA após a negativa do governo para o projeto de duplicação do Terminal Marítimo da Baía de Ilha Grande (Tebig), controlado pela Transpetro, subsidiária da Petrobras. O veto ocorreu em maio, sob a alegação, entre outras, do risco de introdução e dispersão de espécies marinhas exóticas.
— O maior projeto econômico de Angra dos Reis é a duplicação do Tebig, mas ele já está a dois quilômetros da Ilha Grande, e entendemos que sua expansão poderia causar prejuízos ambientais ao local. A negação gerou manifestação da prefeitura, dos jornais locais, eu fui xingado, o secretário de pesca levou ovo, mas mantivemos a posição — defende-se Minc. — Um dos argumentos foi o aumento do número de embarcações, o que significaria a possibilidade de espécies invasoras, e mencionamos no relatório a preocupação com o coral-sol.
Mesmo com a polêmica, Minc garante que a “APA vai sair”, mas não define prazo. Segundo ele, seria a primeira APA marinha do estado, e cujo plano de manejo estabeleceria normas, como locais permitidos para ancoramento, inspeções sanitárias, verificação das regras da água de lastro e controle da bioincrustação.
— Temos três baías. Guanabara e Sepetiba já estão detonadas, a da Ilha Grande é disparadamente a melhor de todas. A APA marinha ia pegar só a parte do mar, onde não temos tanto controle — afirma Minc, ao ser questionado sobre a necessidade de criação de mais uma unidade de conservação na área, que já abriga o Parque Estadual da Ilha Grande e a APA de Tamoios, só para citar as principais.
Regulação fraca contra invasões
Diferentemente da água de lastro, que já sofre grande pressão de normas internacionais, não há qualquer regulamentação sobre a bioincrustação, tema relativamente novo das rodas ambientais. Neste processo, organismos vivos, sobretudo os corais, ficam agarrados a cascos de navios e a estruturas de plataformas, embarcações que percorrem grandes distâncias nos oceanos, transportando essas espécies para biomas totalmente diferentes dos seus. Sem um predador natural, elas acabam proliferando e até competindo com espécies nativas. Segundo um levantamento citado pela professora Andrea Junqueira, do Departamento de Biologia Marinha da UFRJ, estima-se que de 55% a 69% das 1.780 espécies exóticas detectadas em portos no mundo foram introduzidas por bioincrustação.
— Havia uma tinta que os leigos chamavam de “envenenada”, porque impedia a incrustação, que não interessa em nada ao navio, pois aumenta o atrito e o consumo de combustível. Mesmo assim, havia incrustação em áreas não pintadas. Porém, nos anos 2000, ela foi banida, pois causava anomalias em algumas espécies. Para piorar, hoje se explora petróleo em águas profundas, o que dificulta a limpeza. E a tecnologia para limpar o casco das embarcações não evoluiu como a de exploração do óleo — explica Andrea.
Ela cobra normas internacionais consistentes para o setor:
— Todo vetor de introdução tem que ser gerenciado mundialmente, não adianta um país só adotar uma medida muito rígida. E não existe ainda hoje nada global sobre a bioincrustação. O que existe são medidas de alguns países, como Austrália e Nova Zelândia, com ações preventivas e voluntárias.
Como parte de um licenciamento ambiental para perfuração marítima, a Petrobras realizou este ano o primeiro seminário para discutir a bioincrustação, do qual participaram representantes de unidades de conservação e pesquisadores, entre eles, os envolvidos no combate ao coral-sol. Visando ao controle da bioinvasão, a Petrobras diz participar de fóruns internacionais e informa investir em ações de prevenção, como no desenvolvimento de novas tecnologias, junto de órgãos, como o Instituto de Estudos do Mar Almirante Paulo Moreira, da Marinha. Ela não informa, entretanto, quanto gasta na prática.
Enquanto a questão da bioincrustação permanece no âmbito das discussões, a água de lastro já é uma preocupação mais antiga, e a principal regra é que a troca da água seja realizada em alto-mar e não próximo à costa, onde pode afetar sua biodiversidade. O transporte marítimo movimenta mais de 80% das mercadorias e transfere internacionalmente entre 3 e 5 bilhões de toneladas de água de lastro por ano. Estima-se que já tenha provocado a movimentação de pelo menos sete mil espécies entre diferentes regiões, causando alterações em ecossistemas. Nos Estados Unidos, por exemplo, o mexilhão-zebra europeu Dreissena polymorpha infestou 40% das vias navegáveis e já exigiu entre US$ 750 milhões e US$ 1 bilhão em gastos com medidas de controle, entre 1989 e 2000.
A Organização Marítima Internacional (OMI), agência especializada da ONU, promoveu entre 2000 e 2004 uma convenção sobre o controle da água de lastro, da qual fazem parte 36 países, entre eles o Brasil, o que agrega 29% do mercado marítimo mundial. Sobre a bioincrustação, a agência informou ter um “esboço” de diretrizes do seu controle por meio do Comitê de Proteção de Biodiversidade Marinha. Elas podem ser aprovadas ainda este mês.
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