Primatologista defende que primatas nunca precisaram recorrer à razão para manter a violência sob controle. "O passado violento é apenas uma suposição"
Marco Túlio Pires
O comportamento pacífico pode ser observado em primatas
humanos e não humanos como motor das relações sociais, afirma o
primatólogo holandês Frans de Waals
(Fuse/Thinkstock)
A guerra não está no feitio natural do ser humano, como defendia o
filósofo inglês Thomas Hobbes no século XVII, um dos pais da política
moderna e, mais recentemente, o psicólogo canadense Steven Pinker. O normal da nossa espécie é justamente o contrário: nós seríamos naturalmente pacíficos.
"Se realmente houvesse uma base genética para nossa participação em
combates mortais, deveríamos praticá-los de bom grado", escreve Frans de
Waal, holandês especialista em comportamento animal, psicologia e
primatologia, em um artigo que será publicado nesta sexta-feira na
revista Science.
Waal ataca uma das suposições de Pinker no livro The Better Angels of Our Nature – Why Violence Has Declined
(Editora Viking, 802 páginas, sem edição brasileira). Para o canadense,
os antepassados viviam em guerra e a violência foi diminuindo
lentamente com o amadurecimento do conhecimento humano, principalmente
após o século XVI, com a 'Era da Razão'.
Waal contesta essa visão. "A ideia de que vivemos um passado violento é
apenas uma suposição", disse em entrevista a VEJA. O comportamento
pacífico sempre esteve presente como motor das relações sociais de
antigamente em primatas humanos e não humanos. "Os primatas nunca
recorreram ao iluminismo para manter a violência sob controle."
Biblioteca
The Better Angels of Our Nature - Why Violence Has Declined
Pinker
demonstra com estatísticas que a humanidade passa por seu mais pacífico
período histórico. Nessa visão, o terrorismo islâmico, os massacres em
escolas e locais públicos e a criminalidade urbana empalidecem diante da
brutalidade sem limites das eras anteriores. Pinker diz que o anjo
civilizatório, enfim, aprisionou a maldade inata do homem.
Autor: PINKER, STEVEN
Editora: VIKING
O primatólogo apresenta sua defesa com base em dois argumentos. O
primeiro diz respeito à falta de provas científicas para afirmar que os
antepassados do homem viviam em um estado de guerra, além de diversos
estudos que defendem justamente o contrário.
"Os caçadores-coletores comercializavam, realizavam casamentos com
grupos distintos e permitiam a passagem de estranhos em seus
territórios", escreve Waal. "Eram frequentemente pacíficos e algumas
vezes violentos". Embora existam evidências de que assassinatos isolados
ocorriam há centenas de milhares de anos, não há sinais de guerra antes
da Revolução Agrícola, há 12.000 anos.
Arqueólogos nunca encontraram, por exemplo, cemitérios com um grande
número de armas atravessando esqueletos antes da Revolução Agrícola.
"Isso não quer dizer que a guerra não existia nessa época, mas significa
que a suposição costumeira de que nossos ancestrais travaram longas
guerras e passavam por períodos breves de paz carece de respaldo
arqueológico", escreve de Waal.
Empatia — O segundo argumento de Waal diz respeito à
comparação que frequentemente se faz entre o comportamento de chimpanzés
e bonobos para justificar a naturalidade da violência humana. O
primatólogo defende que, embora os chimpanzés tenham comportamento por
vezes agressivo, os bonobos são marcados por uma convivência
relativamente pacífica e altamente empática.
"Agressão fatal entre bonobos nunca foi observada e algumas vezes
grupos diferentes se misturam em atividades sexuais ou lúdicas",
argumenta. "Esses primatas podem ser os mais próximos do ancestral comum
entre chimpanzés e humanos do que qualquer chimpanzé vivo."
Avanços científicos nos últimos 10 anos começaram a questionar a visão
de que a vida animal, e consequentemente a natureza humana, é baseada na
competição desenfreada que leva ao estado de guerra. Depois da
descoberta de que chimpanzés se beijam e abraçam frequentemente depois
de uma briga dentro do grupo, inúmeros estudos documentaram a
"reconciliação" em primatas não humanos e outros animais.
"A reconciliação é um mecanismo social comum que seria supérfluo se a
vida social fosse regida inteiramente pela dominação e competição", diz o
pesquisador.
A paz também traz benefícios para o indivíduo. "Pessoas relatam uma
sensação de recompensa após fazerem algo bom e mostram ativação de
regiões relacionadas à recompensa no cérebro quando isso acontece",
escreve o especialista. "Não sabemos se isso ocorre com outros primatas e
é importante que seja investigado".
Waal finaliza a análise dizendo que o estudo da empatia pode ser a
única saída para lidar com a guerra. "Sabemos que ela pode ser ativada
por seres de outras espécies", referindo-se, por exemplo, a quando
humanos salvam uma baleia encalhada. Não fosse a empatia por todas as
formas de vida, soldados não pensariam duas vezes antes de matar nem
voltariam do campo de batalha com problemas psicológicos. "Trata-se de
um grande desafio para um mundo que deseja integrar uma multitude de
grupos étnicos e nações."
"Os seres humanos possuem mecanismos naturais de manutenção da paz"
Frans de Waal
especialista em comportamento animal, psicologia e primatologia, e
diretor do Centro de Pesquisa Primata da Emory University, de Atl
O senhor concorda com Steven Pinker sobre o passado violento dos nossos antepassados?
É difícil julgar o livro do Pinker, mas certamente a ideia de que
vivemos em um passado violento é apenas uma suposição, como discuto no
meu artigo da Science. Não existem evidências concretas para
apoiar tal argumentação. A ideia de que sempre fomos violentos é
especulação. Pode ser verdade, mas não há provas.
O conhecimento não teria ajudado a nos tornarmos um povo mais pacífico, como sugere Pinker? Entendo
que os seres humanos, assim como outras espécies, possuem mecanismos
naturais de manutenção da paz. Os bonobos, por exemplo, nunca precisaram
do iluminismo para manter a violência sob controle.
Os bonobos são mais pacíficos e os chimpanzés mais agressivos.
Ambas são características observadas nos seres humanos. Por que
favorecer os bonobos e dizer que os humanos são mais parecidos com eles?
Os bonobos e os chimpanzés são os parentes mais próximos do
homem. Nosso último ancestral comum viveu cerca de seis milhões de anos
atrás e existem estudos que indicam sua proximidade com os bonobos. A
violência na nossa linhagem pode ter começado durante a Revolução
Agrícola. Isso explica por que não somos muito bons com a violência e
desenvolvemos transtorno do stress pós traumático em situações de
guerra.
Até agora, não se observou bonobos em comportamento de guerra.
Contudo, há muitos registros de agressão letal entre seres humanos e
entre chimpanzés. Essa não seria uma indicação de que, pelo menos no
comportamento agressivo, humanos e chimpanzés são parecidos?
Sim, é uma análise válida. Contudo os chimpanzés podem ser uma variação
violenta. Com isso quero dizer que nosso ancestral comum e os bonobos
podem representar o “tipo original” e os chimpanzés desenvolveram a
violência depois de terem se separado dos bonobos cerca de dois milhões
de anos atrás. Além disso, os humanos desenvolveram a violência, ou pelo
menos a guerra, só depois da Revolução Agrícola. Não sabemos, mas se
isso for verdade, a comparação não é válida.
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