Rochas indicam que oxigênio só passou a se acumular na atmosfera há 2,5 bilhões de anos
SALVADOR NOGUEIRA |
Edição 190 - Dezembro de 2011
Quem não gosta da Terra? É, disparado, o lugar mais
hospitaleiro do sistema solar. Incontáveis formas de vida, de incrível
complexidade, ocupam cada cantinho do globo, das
profundezas do mar ao topo das montanhas mais altas. A variedade
biológica – a famosa biodiversidade – é um dos mais apaixonantes
aspectos do planeta. Mas nem sempre foi assim. Houve um tempo – na
verdade, a maior parte do tempo – em que tudo o que havia na face da
Terra eram seres unicelulares e simples. Bactérias.
A diversidade de espécies só começou a aumentar depois que um evento
radical mudou a equação da vida terrestre e elevou drasticamente a
habitabilidade de nosso mundo, permitindo, em última instância, que
viéssemos a existir. Esse evento foi a elevação dos níveis de oxigênio
na atmosfera, que deixou registros em rochas muito antigas. Um grupo
internacional de pesquisadores, do qual participou um brasileiro,
analisou amostras dessas rochas de diferentes regiões do planeta e
conseguiu agora fortes indícios de quando e como teria acontecido essa
transformação, que fez as taxas de oxigênio passarem de indetectáveis na
atmosfera primitiva para os 20% encontrados na atmosfera atual.
Acredita-se que tenha sido a própria vida que tenha originado todo
esse oxigênio e promovido a mudança na composição da atmosfera da Terra.
Essa alteração teria se iniciado, segundo os paleontólogos, quando
emergiu durante a evolução dos seres vivos a capacidade de realizar
fotossíntese. Comumente associada às plantas, a habilidade de produzir
oxigênio também é comum a bactérias como as algas azuis, seres
unicelulares que vivem nos oceanos e, apesar do nome, são mais
semelhantes às bactérias do que às algas. A grande virtude da
fotossíntese é converter a luz solar e o dióxido de carbono em energia
para o metabolismo. Como subproduto, é liberado oxigênio.
Não foi fácil, contudo, introduzir esse gás em
grandes quantidades na atmosfera. Por muito tempo a composição do ar
permaneceu basicamente a mesma porque o oxigênio, altamente reativo,
interagia rapidamente com outras substâncias presentes no mar,
oxidando-as. O principal alvo era o ferro proveniente de rochas que se
encontrava dissolvido na água. O resultado era a precipitação do ferro
oxidado, que se depositava no leito oceânico. Assim, praticamente não
sobrava oxigênio para a atmosfera. Somente quando todo o potencial para
oxidação se esgotou – as rochas e o oceano já não tinham mais como
absorver o oxigênio – é que esse gás finalmente começou a se acumular no
ar.
Foi justamente em formações ferríferas espalhadas pelo mundo que os
pesquisadores liderados por Kurt Konhauser e Stefan Lalonde, da
Universidade de Alberta, no Canadá, encontraram pistas para recontar
essa história toda. Em artigo publicado em outubro no periódico
científico britânico Nature, eles conseguiram estabelecer uma
data para a transição da atmosfera antiga para a nova: o acúmulo de
oxigênio no ar teria começado 2,48 bilhões de anos atrás – a Terra tem hoje cerca de 4,6 bilhões de anos – e foi relativamente rápido.
Para determinar como e quando essa mudança ocorreu, os pesquisadores
analisaram a distribuição do elemento químico cromo (Cr) e de seus
isótopos em formações ferríferas. A ideia é que a distribuição desse e
de outros elementos químicos nas rochas guarde pistas das
características dos oceanos com os quais esses elementos tiveram contato
em tempos antigos.
Na trilha do cromo
Os pesquisadores buscaram amostras de rochas ricas em ferro em
todas as partes do mundo – inclusive no Quadrilátero Ferrífero, em Minas
Gerais. Quem ficou incumbido de levantar e analisar o material
brasileiro foi o geólogo Carlos Alberto Rosière, da Universidade Federal
de Minas Gerais (UFMG).
Como as rochas tinham idades diferentes, foi possível inferir as
mudanças na atmosfera e no ambiente oceânico ao longo do tempo.
Concluiu-se que cerca de 2,5 bilhões de anos atrás grandes quantidades
de Cr foram extraídas dessas rochas e transportadas do continente para o
oceano por águas superficiais extremamente ácidas, contendo ácido
sulfúrico produzido a partir da decomposição da pirita (sulfeto de
ferro). Como essas reações nas rochas são explicadas principalmente pela
presença de bactérias aeróbicas acidofílicas – que necessitam do
oxigênio do ar para viver e são capazes de sobreviver em ambientes
ácidos –, supõe-se que uma quantidade significativa de oxigênio já
tivesse se acumulado na atmosfera do planeta.
Há evidências, porém, de que a produção desse gás tenha começado bem
antes, cerca de 3,5 bilhões de anos atrás, com as algas azuis, também
conhecidas como cianobactérias. Por um longo período, no entanto, o
oxigênio liberado por essas algas mal alcançava a atmosfera por
interagir rapidamente com o ferro de origem vulcânica dissolvido no mar,
originando as grandes formações ferríferas que hoje se encontram nos
continentes e abastecem as mineradoras e a indústria siderúrgica.
“Depois dessa fase inicial de produção de oxigênio, que durou quase 1
bilhão de anos, o processo de transformação da atmos-fera pode ter sido
bem rápido”, afirma Rosière. “Em 100 milhões a 200 milhões de anos, ela
já apresentaria grandes quantidades de oxigênio.”
Esses indícios de que uma atmosfera rica em oxigênio já existisse há
2,5 bilhões de anos são os mais antigos já identificados até o momento. E
são compatíveis com análises anteriores, baseadas em outras evidências
desse importante evento na história da Terra, chamado de grande
oxigenação. Contudo, os pesquisadores admitem que a aceitação dessas
conclusões não é geral. “Alguns podem dizer que as características que
encontramos nas formações ferríferas indicam condições locais, mas não a
de todo o planeta”, explica Rosière.
Somente mais evidências poderão con–firmar que esse é um sinal do
episódio que permitiu o eventual surgimento de criaturas multicelulares,
como os animais de grande porte e os seres humanos. “Na geologia, uma
andorinha ou duas não fazem verão. Existe uma grande quantidade de dados
que são passíveis de questionamento ou de interpretação alternativa.
Então é preciso ter uma somatória convergindo numa dada direção”, diz
Rosière. “Não dá para dizer: agora estamos satisfeitos, as coisas estão
resolvidas.”
Artigo científico
KONHAUSER, K.O. et al. Aerobic bacterial pyrite oxidation and acid rock drainage during the Great Oxidation Event. Nature. 19 out. 2011.
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